quarta-feira, 25 de julho de 2012

Boltansky - Les Archives du Coeur & Entre-temps

Les Archives du Coeur - Entre-temps
Vídeo instalação – Vídeo Entre-temps La Maison Rouge 2008
A obra ENTRE-TEMPS do artista francês Christian Boltanski exibida em São Paulo no Paço das Artes, faz parte da programação 2009, ANO DA FRANÇA NO BRASIL. A vídeo-instalação foi inicialmente concebida em 2003 para apresentação na Galerie Yvon Lambert em Paris. O trabalho em processo desde então, vem se desdobrando e adquirindo maior complexidade. Em 2005 o artista apresentou na Maison Rouge, a obra LE COEUR (O coração). Em 2008, também na Maison Rouge, o artista criou uma nova instalação para apresentação do vídeo ENTRE-TEMPS que ele intitulou LES ARCHIVES DU COEUR (Os arquivos do coração). O texto aqui apresentado se propõe a introduzir uma pequena reflexão crítica sobre esta instalação.
Cabe, antes de discorrer sobre o trabalho, situar o artista. Nascido em Paris no ano de 1944, Christian Boltanski é filho de uma tradição literária existencialista e de uma carga histórica dramática, na qual a sombra do Holocausto esteve sempre presente. Sem qualquer formação artística tradicional, ele começou sua produção em 1958, pintando telas em grandes formatos. Em 1969 realizou uma série de filmes experimentais com duração entre 20 segundos e 4 minutos, e produziu seu primeiro livro de artista. Ele se interessa não só pela imagem, mas também pela escrita, pelos objetos e pela hibridização dos meios para construção de instalações e espaços imersivos. Em 1972 participa da 5a Documenta de Kassel, e a partir de então é convidado a expor em museus e galerias estrangeiras e sua obra alcança projeção internacional. Foi convidado a participar da Bienal de Veneza e da 8a Documenta de Kassel. A relação entre identidade, memória, vida e morte compõem o tema de sua produção que até hoje se mantém muito ativa. É casado com a artista Annette Messager com quem vive até hoje em Malakoff, arredores de Paris. Ambos estão entre os artistas contemporâneos franceses mais conceituados da atualidade. Foi professor na “École Nationale Supérieure des Beaux-Arts”.
O vídeo ENTRE-TEMPS é projetado sobre uma cortina translúcida de plástico (aproximadamente 2,3m altura x 3,0m de largura, a 15cm do chão) que se movimenta suavemente com o sopro de um ventilador. O vídeo corresponde a uma seqüência de lentas fusões de fotografias antigas em branco e preto de retratos do artista, desde sua infância até os 60 anos. A resolução das imagens é rudimentar e muitas estão mal focadas. O resultado é uma pseudo-fotografia de identidade aparentemente inerte, que flutua instável pelo balanço do vento, cujas feições se apresentam em sutil e constante transformação.
Para a vídeo-instalação LES ARCHIVES DU COEUR (Os arquivos do coração) em 2008 na Maison Rouge, o artista elaborou um contexto mais complexo com apresentação do mesmo vídeo ENTRE-TEMPS.
Ao atravessar uma cortina preta na entrada e penetrar em uma sala ampla na penumbra, a pergunta inscrita na parede “Qui êtes vous?” (Quem é/são você/vocês?) estabelece um diálogo direto com o público. A subjetividade do visitante é abruptamente invocada, a esfera cognitiva acionada e a percepção aguçada. Há uma mudança radical na configuração do espaço, cuja fronteira é claramente marcada pela cortina. A situação habitual de ambiente coletivo é substituída por uma atmosfera insólita e intimista, na qual os aspectos sensórios visuais e sonoros são ricamente explorados. A presença de símbolos na obra do artista é uma constante. Ao expressar-se em texto, ele inicia o contato com o visitante recorrendo à abstração. Com a pergunta direta e analogamente complexa e rica de significados, Boltanski sacode a estrutura do visitante desarmando-o para propor uma intensa experiência sensória.
O visitante percebe ao penetrar no recinto, o som amplificado de um batimento cardíaco. Uma lâmpada incandescente e fraca, pisca no ritmo das pulsações. Ela provoca sombras nas paredes da sala que constituem imagens sonoras do coração do artista se propagando por todo o ambiente, carregadas de arquétipos armazenados no inconsciente universal da humanidade. As angustias e os medos presentes desde os primórdios da história da humanidade que a consciência da fragilidade e da efemeridade provoca, emergem com intensidade.
Nas paredes da sala, como se fossem fotografias ausentes, uma série de quadros de formatos variados que o artista chama de espelhos negros estão presos e revelam apenas a profundidade da sua superfície escura, as sombras e o reflexo da lâmpada sobre o vidro. Aqui não se trata da imagem, mas a ausência da mesma é que constrói um significado.
Um pouco mais adiante, encontra-se a projeção do vídeo ENTRE- TEMPS. O retrato do artista em sutil e constante transformação está contaminado com a vibração provocada pela sombra e luminosidade incerta e fraca da lâmpada sobre a superfície flutuante da cortina. A atmosfera da sala é de instabilidade e sonho. Boltanski cria com o conjunto uma situação insólita, onde o tempo em suspenso traz a memória para uma vivencia de presença no passado. Não há possibilidade de pausa ou captura.
Na saída, o visitante é convidado a gravar dentro de uma cabine o batimento cardíaco de seu coração, e a levar consigo uma cópia da gravação. O artista pretende continuar com estas gravações nos próximos anos de modo a ampliar ao máximo este corpo de batimentos cardíacos que ele deseja preservar contra a passagem do tempo.
O título entre-temps (entre-tempos) reforça o caráter ambíguo e imponderável do lugar que Boltanski propõe ao visitante para experimentação. Um lugar intermediário onde o tempo cronológico desaparece para dar espaço a um intervalo, um parêntese, um interstício, um tempo suspenso, paralelo de espera. O conjunto oscila dentro de uma zona híbrida e fronteiriça entre a realidade e a ficção, entre a memória e o esquecimento. O auto-retrato em transformação do artista mescla-se aos espelhos negros para constituir simbolicamente uma fusão da esfera particular e coletiva do indivíduo.
Existe um movimento, um sopro que emana deste lugar, sente-se a presença de algo frágil e ao mesmo tempo persistente. A luminosidade é tênue e instável. O clima é de mistério e estranheza. Todos estes elementos intensificam a apreensão do caráter nostálgico, efêmero e transitório da existência.
Boltanski procura explorar a sobreposição de sentidos através da união de dispositivos que estimulam a subjetividade e cognição aos aspectos sensórios da expansão do áudio e da imagem no ambiente. A sincronia obtida não só entre os aspectos visuais e sonoros, mas também com a resultante audiovisual associada aos aspectos simbólicos da instalação, amplia a força do trabalho. Não se trata de uma representação, mas da construção de uma composição onde a lógica e a sensibilidade são ativadas simultaneamente, potencializando a apreensão dos significados. LES ARCHIVES DU COEUR exalam uma densidade de significados que talvez só possa ser apreendida qualitativamente (BERGSON).
Até que ponto, ao envolver a participação do visitante no processo de criação artística, Boltanski não procura apenas ampliar o grau de ressonância deste público na sua relação com a obra, mas também fundir-se ele mesmo com o coletivo da condição humana? Não haveria aqui a manifestação de um desejo de pertencer e compartilhar, tão premente como a necessidade que o ser humano tem de se reconhecer como parte de alguma coisa e como identidade única?
A poética de Boltanski envolve erudição, sensibilidade e afeto. O artista aborda questões como a dor, a tristeza e a perda de modo extremamente delicado e profundo. O público envolvido com o calor que se desprende do trabalho, o acolhe e se dispõe a refletir sobre a realidade inquietante e assustadora que representam a fragilidade, a efemeridade da condição humana, a morte e o vazio.
Se recursos de tecnologia são utilizados para produção das imagens e do áudio, estes são rudimentares se comparados com as tecnologias avançadas empregadas atualmente por muitos artistas. Boltanski, com muita simplicidade e poucos recursos, subverte a máquina ao fazer uso dela para potencializar a expressão do maior diferencial que ele possui em relação a ela: a afetividade e o sentimento.
BIBLIOGRAFIA BOLTANSKI, Christian. Christian Boltanski. London, Phaidon Press Limited,
2001.
BOLTANSKI, Christian. Les modèles: cinq relations entre texte & image. Paris: cheval dáttaque, 1979.
BOLTANSKI, Christian; GRENIER, Catherine. La vie possible de Christian Boltanski. Paris: Éditions du Seuil, 2007.
NUIT BLANCHE PARIS 4 OCTOBRE 2008. Programme. Paris: Mairie de Paris, 2008.
OBRIST, Hans Ulrich. Boltanski, Christian and Luc. Intervieus. Vol 1. Milan: Editzioni Charta, 2003.
Internet (acesso em 02/07/2010)
http://www.tate.org.uk/modern/exhibitions/cinema/boltanski.htm
http://www.lecinematographe.com/programme- sept08/films/courts_mrejen_boltanski.html
http://www.webzinemaker.com/admi/m9/page.php3?num_web=36408&rubr=3&i d=261032
http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-boltanski/ENS- boltanski.htm
http://www.arte.tv/fr/navigation/1182390.html

PENSANDO O ESPAÇO DO HOMEM


“PENSANDO O ESPAÇO DO HOMEM”

Milton Santos

 

 Resenha bibliográfica

Milton Santos em sua publicação “Pensando o Espaço do Homem[1], faz um estudo sobre as relações entre o ser humano e seu espaço, aponta os problemas que a sociedade contemporânea enfrenta em resposta ao sistema capitalista mundial e seus reflexos na geografia do planeta. Ele discute o papel do Estado e alguns efeitos provocados pelos avanços tecnológicos a serviço desta política globalizada, propõe uma reconstrução sintonizada do espaço e da sociedade, com conseqüente alteração dos objetos geográficos produzidos e cita Cuba como exemplo para uma política do Estado.
            Ele aponta apenas o presente, o aqui e agora, como sendo a realidade que abarca a dimensão espacial e temporal. O espaço de natureza diferente reúne o presente e o passado ao conter simultaneamente a vivencia atual juntamente com “objetos geográficos cristalizados[2]“ de “momentos que foram[3]“. Ao observar que “o momento passado está morto como tempo, não porém como espaço[4]” e que a apreensão do presente requer um desprendimento gradativo de dogmas envelhecidos de modo a permitir a atualização de conceitos e valores ele não nega a função do passado apontando-o como referencia útil e necessária para relacionarmos fatos e contextos, para identificarmos causas e efeitos e nos localizarmos na dinâmica do processo histórico.  
Segundo ele, vivemos atualmente uma nova fase na historia da humanidade resultante de transformações drástica trazidas pela sofisticação e aceleração do modelo capitalista, oriundo da Revolução Industrial. Se a técnica foi utilizada para intermediar a natureza e o homem desde os primórdios da civilização, hoje ela se tornou imprescindível para construção de objetos sofisticados que subvertem as relações entre ambos. Os pilares do período em que vivemos denominado pelo autor de tecnológico correspondem à ciência, à tecnologia e aos meios de comunicação de massa. O grande veículo são as empresas multinacionais, verdadeiros “instrumentos de concentração e acumulação de capital[5]. A “mundialização da produção e do consumo[6] para diminuição dos custos de mão de obra assim como a conquista de mercado com aumento de demanda e conseqüente elevação dos lucros são fatores que provocam uma “universalização perversa[7] com “generalização do monopólio em escala mundial[8], transformando os espaços em função do papel que desempenham neste macro sistema. As diferenças sociais se agravam conforme as particularidades de cada Estado, arrastado por esta engrenagem e preocupado em garantir sua economia no contexto mundial.
A rápida evolução tecnológica torna-se um agente multiplicador de exploração com impacto significativo sobre o processo de acumulação, não mais ditado pela produção, mas pela crescente demanda de consumo. Este, cada vez mais intermediado pelos serviços, destaca o papel das atividades terciárias na sociedade, anteriormente pouco expressivo. A complexidade e rapidez crescente na dinâmica do sistema aumentam a necessidade de liquidez e acumulação o que acarreta uma concentração dos meios de produção junto aos instrumentos de trabalho e acelera as aglomerações e distorções econômicas e demográficas.
Como conseqüência, a economia e seus “mecanismos de dominação[9] tornam-se mundializados. As “influencias externas cada vez mais deformantes e uma estrutura interna cada vez mais deformada[10] repercutem significativamente e de forma extremamente negativa nos países subdesenvolvidos:

“Para os países subdesenvolvidos, o resultado é claro: produção sem relação com as necessidades reais; exportações e importações nocivas à economia mundial; superutilização dos recursos sociais em homens e em matérias-primas, em beneficio de grandes firmas mundiais; subutilização da forca de trabalho e dos recursos efetivamente indispensáveis à sobrevivência. No plano do Estado, endividamento crescente, distorção na destinação dos recursos, proteção, tornada indispensável, às atividades que sustentam o “crescimento” e o comercio exterior, com conseqüente empobrecimento do Estado. No plano social, agravamento do não-emprego, da pobreza, das condições de habitat, educação, saúde e alimentação. Empobrecimento relativo e absoluto.” (SANTOS, 2007, p.20).

O espaço, “soma dos resultados da intervenção humana sobre a terra[11], se tornou mundial e responde a pressões internacionais. Sua organização condiz com a ideologia dominante e estrutura de acumulação. Para isto, sacrifica-se a emotividade e o lado humano em favor de modelos padronizados, precários ou feios, mais rapidamente alcançados e consequentemente mais adequados às pressões para acumulação. “Os locais de trabalho, de estudo, de lazer, o quadro da nossa vida quotidiana são concebidos como mercadorias[12]e se encaixam nestes modelos. A propaganda e o marketing se desenvolvem e a informação é deturpada visando atrair o consumidor. Dentro deste cenário complexo, a presença da “Nação-Estado[13] se impõe como necessidade para estabelecer mecanismos de regulamentação. Esta, antes atenta tanto às questões de interesse nacional como internacional, com o advento de uma sociedade globalizada, não tem autonomia suficiente para lidar com os problemas internos (SANTOS, 2007).
As metrópoles têm uma necessidade crescente de serviços para satisfazer a demanda de produção. Elas esmagam as regiões circundantes que ficam com sua capacidade de produção reduzida devido à absorção, deslocamento e desligamento da sua mão de obra, respondendo a um comando econômico exógeno. A especialização do individuo em função de interesses distantes torna-o estanho ao seu trabalho e ao seu habitat. Esta dissociação se amplia na cadeia de sistemas decorrentes:

“...a cidade torna-se estranha à região, a própria região fica alienada, já que não produz mais para servir às necessidades reais daqueles que a habitam... o homem produtor sabe cada vez menos quem é o criador de novos espaços quem é o pensador, o planificador, o beneficiário.” (SANTOS, 2007, p.29).

O homem transformado em mercadoria “deve sujeitar-se às coisas que ele próprio construiu[14]. O espaço também transformado em “capital comum a toda a humanidade[15]com valor equivale a um potencial abstrato que lhe é conferido, torna-se elemento de especulação. O fato de ser acessível apenas àqueles que detêm o capital, reforça a noção de propriedade privada de um bem coletivo e aprofunda as distancias entre os homens. Disputado pelas superpotências o espaço necessita de demarcações abstratas ou fronteiras para proteção dos interesses particulares da “Nação-Estado” a que pertence: “Se existem espaços vazios, já não existem espaços neutros[16].

“... com o desenvolvimento das forças produtivas e a extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para aprofundar as diferenças de classes. Essa mesma evolução acarreta um movimento aparentemente paradoxal: o espaço que une e separa os homens” (SANTOS, 2007, p.32).

Estabelece-se assim um conflito entre o mundo artificialmente dividido e a sociedade indivisível na sua totalidade.
Para o autor só é possível interpretar o espaço e sua evolução levando-se em conta a análise conjunta de três aspectos: a forma, a estrutura e a função.  Nenhuma destas categorias faz sentido isoladamente. Ele diferencia a abordagem da geografia entre “espacialistas[17] e “espaciólogos[18].  Os primeiros ignoram a questão social enquanto que os segundos procuram compreender os espaços na sua relação com as dinâmicas sociais. Antigamente suas configurações respondiam diretamente à estrutura social com mudanças lentas e endógenas. Hoje, o sistema se tornou tão complexo e mediado que “as coisas já nascem prenhes de simbolismo[19]com significados deformados e a evolução das formas do espaço tornou-se uma função do marketing e não de uma realidade.

“Um método falso usado para analisar uma realidade igualmente falsa, resulta uma mistificação.” (SANTOS, 2007, p.59).
           
            Milton Santos observa que tanto a noção de tempo como a de escala são fundamentais para se interpretar um espaço. Este é total, mas sua leitura na forma de paisagem não o é. De natureza contínua, ele se apresenta funcionalmente fragmentado, impedindo a leitura e compreensão dos fatores que atuam na sua dinâmica. O autor observa com pertinência que negligenciamos o todo tornando limitada e superficial a percepção e reunião de objetos no espaço na busca pela apreensão da paisagem. Constituímos uma interpretação fragmenta deste espaço, “amoldada pela ideologia[20]que obedece às demandas capitalistas assim como à estandardização industrial.
A paisagem, produzida pela sociedade através de mediação, corresponde a uma “funcionalização da estrutura técnico-produtiva e lugar de fetichização[21]”. Situada em um determinado momento da história, sofre constantes transformações parciais acompanhando as mudanças da sociedade. Os elementos nela que se mantêm, testemunham o passado constituindo uma “acumulação de tempos[22]”. Os diversos tipos tais como centros urbanos, metrópoles, periferias e paisagens rurais são formas “mais ou menos duráveis[23]de combinações de “objetos naturais[24] e de “objetos fabricados[25] ou “sociais[26] que funcionam como registros da ação do ser humano tanto no passado como no presente.
O autor propõe como passo inicial na busca de solucionar o conflito entre o homem e o espaço, “desfetichizar[27] a ambos: “nós não mudaremos o mundo, mas podemos mudar o modo de vê-lo[28]. Ele aponta a necessidade de desmistificar a “formação social que anima o espaço[29]e a paisagem. Só então, com o estudo dos modos de produção e seus reflexos na sociedade ao longo da historia, será possível alcançar uma compreensão do valor real do trabalho do homem, construir uma moral mais generosa, resgatar o valor do indivíduo e assim “estabelecer os alicerces de um espaço verdadeiramente humano[30].
O autor cita Ragnar Nurke e contesta sua afirmação de que um mercado precisa de um aumento generalizado de produtividade para crescer, julgando imediatista esta estratégia de consumo isolada da política de produção, e afirma apoiado em Johannes Messner que a produtividade deve ser seletiva e solidária, “estreitamente ligada ao consumo da sociedade como um todo[31]. Do contrário há aumento de pobreza, dependência externa para abastecimentos de bens de consumo essenciais, e “desperdício de recursos materiais e humanos[32].
Por conta desta situação, ele aponta a aproximação de uma crise fatal que possivelmente derrubará o atual sistema capitalista, que ele associa a um novo modelo de mercantilismo. Ele acredita na hipótese de estarmos deixando o “período tecnológico[33] iniciado com a Revolução Industrial em direção a um novo momento histórico. Apesar de aceitar a possibilidade de em muitos casos o próprio Estado reconhecer a necessidade de mudanças no sistema e decidir agir, considera mais provável que o movimento seja desencadeado pelas massas sacrificadas e oprimidas. Possivelmente haveria um período de transição e conflito entre as antigas classes dominantes e a massa, agravado pelo descompasso entre as mudanças políticas e sociais em relação às transformações mais lentas do espaço. Estes desajustes exigiriam do Estado uma interferência efetiva na divisão democrática do trabalho, uma atuação ativa reguladora e de planejamento contínuo e indissociável na política do espaço e da produção de modo a permanecer próximo da Nação, protegê-la e evitar situações como as que ocorreram em Angola, Moçambique, Etiópia e Camboja.
Seriam necessárias inúmeras modificações no processo produtivo, nas relações do homem com a natureza e com seu semelhante para se reconstruir o espaço, para se obter uma sociedade igualitária mais humana, de modo que “todos os cidadãos participem da tarefa da produção coletiva, mas também de seus resultados[34]. Seria necessário agir em um plano total sócio-econômico e político do “Estado-Nação[35], e não apenas em um plano local. A natureza do Estado transformada, uma economia não mais baseada nos fluxos mas nos estoques, a estrutura global da produção subordinada ao consumo e adaptada aos recursos nacionais e à população, a reorganização das funções do espaço das relações que o Estado estabelece com o sistema internacional, e das relações do próprio sistema internacional, são medidas que teriam de ser aplicadas, priorizando os aspectos sociais em relação aos econômicos.
O Estado socialmente mais rico, teria então mais autonomia para estabelecer um modelo próprio e condizente com seu contexto cultural e geográfico. Haveria uma distribuição mais homogênea de produção e de população, os bens seriam menos rapidamente destruídos, um aumento na oferta de empregos contribuiria para a diminuição da pobreza, “o novo papel de cidadão restauraria o homem em sua dignidade e eficiência política[36]. A tecnologia sintonizada com esta nova dinâmica trabalharia a favor, agilizando este processo de transformação favorável do espaço e da sociedade.
Estas mudanças seriam incorporadas no espaço alterando gradualmente sua forma. Os objetos geográficos anteriores teriam novas finalidades. Em decorrência, muitos seriam transformados ou substituídos. Os que permanecessem poderiam adquirir novas finalidades, ou se manteriam inativos. O autor questiona se a presença de objetos residuais de caráter nocivo indicaria estarem “em disponibilidade[37], “em espera[38], constituindo uma ameaça ao programa de reconstrução, ou se sua presença física apenas guardaria uma significação paisagística.
Em sua obra Milton Santos aborda questões cruciais, aponta graves disparidades sociais altamente desestabilizadoras de um mundo globalizado, antagônicas à condição humana e por conseguinte difíceis de serem toleradas. Em linguagem clara e objetiva elabora uma análise consistente dos problemas ocasionados pela economia deformante capitalista. O autor discute a complexidade da dinâmica dos mecanismos de produção sobre o homem e sobre o espaço, na qual um sistema de consumo é estimulado e priorizado, e aponta as conseqüências negativas deste processo. Identificando uma crise social mundial já em 1977, situação que se agravou de uma forma dramática até os dias de hoje, ele propõe uma transformação nos valores para reconstrução de um espaço e de uma sociedade mais digna e igualitária. Se o modelo paternalista e autoritário de Cuba no qual a liberdade do indivíduo é cerceada hoje também não se confirmou satisfatório no combate à pobreza, o texto aborda com lucidez questões essenciais e incita o leitor a uma reflexão e questionamento sobre a necessidade de se buscar novos caminhos para construção de uma sociedade mais justa e generosa na qual a dignidade humana possa ser resgatada.
Monique Allain
2009

[1] SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2007.
[2] SANTOS, 2007, p. 14.
[3] SANTOS, 2007, p. 14.
[4] SANTOS, 2007, p. 14.
[5] SANTOS, 2007, p. 16.
[6] SANTOS, 2007, p.16.
[7] SANTOS, 2007, p.16.
[8] SANTOS, 2007, p.16.
[9] SANTOS, 2007, p. 21.
[10] SANTOS, 2007, p. 20.
[11] SANTOS, 2007, p. 29.
[12] SANTOS, 2007, p. 38.
[13] SANTOS, 2007, p. 25.
[14] SANTOS, 2007, p. 31.
[15] SANTOS, 2007, p. 31.
[16] SANTOS, 2007, p. 26.
[17] SANTOS, 2007, p. 58.
[18] SANTOS, 2007, p. 58.
[19] SANTOS, 2007, p. 59.
[20] SANTOS, 2007, p. 35.
[21] SANTOS, 2007, p. 39.
[22] SANTOS, 2007, p. 54.
[23] SANTOS, 2007, p. 53.
[24] SANTOS, 2007, p. 53.
[25] SANTOS, 2007, p. 53.
[26] SANTOS, 2007, p. 53.
[27] SANTOS, 2007, p. 39.
[28] SANTOS, 2007, p. 40.
[29] SANTOS, 2007, p. 39.
[30] SANTOS, 2007, p. 41.
[31] SANTOS, 2007, p. 69.
[32] SANTOS, 2007, p. 68.
[33] SANTOS, 2007, p. 65.
[34] SANTOS, 2007, p. 73.
[35] SANTOS, 2007, p. 84.
[36] SANOTS, 2007, p. 80.
[37] SANTOS, 2007, p. 83.
[38] SANTOS, 2007, p. 83.

O MUNDO CODIFICADO (2009)

O MUNDO CODIFICADO

Vilém Flusser

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

 

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

O livro é um ensaio no qual o autor discute o caos em que nos encontramos hoje e levanta a possibilidade de um equilíbrio futuro entre o homem e o seu meio, a partir do surgimento de um novo senso de realidade.

 

Flusser inicia seu texto procurando recuperar o conceito original de “matéria” como um preenchimento transitório de formas atemporais, para discutir a relação dialética entre a matéria[1] e a forma[2]. Quando uma forma ou significado se apresentam em estado energético[3] e não em estado sólido ou líquido, é freqüente qualificá-los inadequadamente de imateriais. Ele critica o uso do termo “cultura imaterial” ao nos referirmos à cultura contemporânea de informações, preferindo chamá-la de “cultura energética”. O autor também resgata o significado do conceito de “informar” como dar formas à matéria. Para ele, as formas não são descobertas mas significados, invenções de modelos.

 

O processo de dar forma envolve quatro passos: a apropriação, a conversão, a aplicação e a utilização. A história da humanidade é uma “história da fabricação” e pode ser classificada em quatro períodos: período das mãos, período das ferramentas, período das máquinas que se inicia na Revolução Industrial há aproximadamente 200 anos, e período dos aparelhos eletrônicos.

 

O objeto fabricado provém da subjetividade de seu criador e para que este consiga concebê-lo, precisa recolher-se em si mesmo, distanciar-se do mundo das coisas, e entrar no mundo da abstração de modo a acessar sua imaginação.  Em seguida, ele deve descrever este objeto, encontrar uma maneira de comunicar a sua idéia. Será necessário codificar a informação em símbolos[4], depois difundi-la e também armazená-la em alguma memória. A comunicação humana é um processo artificial. Ela se propõe a armazenar informações adquiridas e por isto comporta-se inversamente à entropia. Na natureza, há outros processos que também são neguentrópicos. Um exemplo é a complexidade alcançada dos seres vivos. As relações são influenciadas pela cultura. Depois que aprendemos um código, este é incorporado como uma segunda natureza e tendemos a esquecer sua artificialidade e a “primeira natureza” do mundo.

 

Dispomos de dois tipos de mídias para transmitir os códigos ou mensagens: a linear na qual o pensamento é expresso em texto[5], e a de superfície na qual o pensamento se faz através da imagem. Tanto a escrita como as imagens são mediações entre o mundo e o ser humano; são informação. Elas se tornam reais a medida em que determinam nossas vidas, mas nos afastam progressivamente da experiência imediata. A civilização em seus primórdios se apoiava na imagem para comunicar-se. Esta pode ser abarcada em seu todo instantaneamente, permitindo  ao ser decifrada, associações espaciais e multiplicação de significados. A imagem aponta do signo ao significado. Ela pertence ao mundo animado. No entanto, este também é um mundo de mito. Apesar de ter o propósito de dar significado, ela propicia a idolatria e prende o homem na alucinação. Nosso mundo externo é um mundo inanimado. Ele precisa de um motor que é nossa vontade. Para que alguma coisa se mova tem que haver uma causa. Do contrário o atrito, força entrópica constantemente atuante, anula o movimento e conduz à inércia. Existe aí um vazio entre a teoria e a observação. Com o desenvolvimento da abstração, cada vez mais o homem passou a fazer uso da escrita para comunicar suas idéias. A linha escrita relaciona o símbolo ao seu significado, representa e descreve alfabeticamente o mundo tridimensional em uma série de sucessões na forma de um processo. Ela foi fundamental para promover uma consciência histórica e para proteger o indivíduo da imaginação alucinatória. No entanto, impõe uma estrutura ao tratar-se de um código linear e portanto exigir uma temporalidade para sua apreensão. Além disso, provém de uma abstração que aliena o sujeito.

 

No ocidente, a partir do século XIX os homens se tornaram substituíveis e passaram a ser subjugados pelas máquinas, simulações dos órgãos do corpo humano que no entanto não têm capacidade de conferir significado às coisas. Os homens foram ficando cada vez mais artificiais e a sua relação de elemento constante face à ferramenta como elemento variável se inverteu modificando completamente a existência aprisionada pela cultura. A imagem[6] tornou se rara em meio à abstração crescente até a chegada dos aparelhos eletrônicos. Com os avanços tecnológicos este quadro se inverteu, principalmente no que diz respeito à cultura de massas para quem a imagem recuperou sua importância na mídia.

 

O cinema introduziu o movimento no movimento. Apesar de ser uma mídia de superfície no que diz respeito à projeção de imagem, ele confere espacialidade à informação através do som. Assim como um texto escrito, o filme exige um intervalo de tempo para sua apreensão. Talvez por isto não saibamos ainda explorar esta linguagem na plenitude de seus recursos.

 

Estamos ainda muito condicionados ao caráter linear de uma narrativa. É preciso que o “pensamento-em-superfície” incorpore o “pensamento-em-linha”. Só então estaremos caminhando para uma nova estrutura mental. Talvez no futuro, o filme seja uma mídia muito mais livre, parcialmente manipulável e reversível, sujeita ao desejo do leitor que poderá atuar sobre a narrativa e escolher o seu papel.

 

O modo como o mundo está estruturado depende de como nós o codificamos. Para o autor, podemos então dividi-lo em dois: O “mundo dos fatos” contem o “reino da experiência imediata”. O “mundo da ficção” abarca o “reino das imagens” e o “reino dos conceitos”. O tipo de ficção determina uma estrutura de códigos diferentes. Os códigos conceituais relacionam-se com os fatos de forma objetiva e consciente. São mais claros e nítidos, porém exigem um erudição. Fazem parte de uma cultura de elite. Já os imagéticos são subjetivos e inconscientes, mais ricos em mensagem e podem ser apreendidos de uma maneira intuitiva. Todavia requerem para elaboração das mensagens um aprendizado de suas técnicas. O ser humano, ao procurar descrever o mundo, precisou quantificá-lo e para isto fragmentou-o e desenvolveu um código numérico que permitisse anexar um numero às coisas nele inseridas. Desde que os números foram traduzidos em tons e cores, o cálculo encontrou uma forma de projetar a partir de si mesmo mundos perceptíveis aos sentidos. Esta mídia foi incorporada essencialmente pela cultura de massas.

 

Na verdade, o ser humano tem três mundos: o da natureza, o da cultura e o do lixo. O design na base de qualquer cultura visa enganar esta natureza através da técnica. Aquele que o produz consegue “ver” de uma forma abrangente[7] as forças atuantes, e antecipa nichos de possíveis demandas que as transformações apontam. Esta percepção lhe permite inventar novos objetos funcionais. Infelizmente, não tem havido uma preocupação moral por parte dos designers com estes produtos e muito menos com o lixo em que se transformam quando perdem sua função. A complexidade cada vez maior dos objetos começou a exigir a participação de toda uma equipe para sua fabricação. Como o resultado não pode ser atribuído a um único autor, o sentimento de responsabilidade se perdeu de vez. Pode-se considerar que a Segunda Guerra Mundial é um exemplo grave decorrente deste fato.

 

Segundo Flusser, tanto a elite quanto as massas ficaram alienadas: a elite com sua abstração distanciou-se da realidade, enquanto que a cultura de massas escondeu o caráter ficcional da imagem. O ideal seria a união das duas mídias proporcionando ao pensamento imagético uma capacidade maior de elaborar conceitos com preservação do sensório na representação dos fatos. A síntese de ambas talvez resultasse em uma nova civilização.

 

As coisas que compunham o mundo estão sendo substituídas por “não-coisas”. As informações também estão mudando. Apenas decodificáveis e portanto “inapreensível”, elas estão assumindo uma importância gradativa, substituindo o objeto no nosso campo de interesse. As coisas estão encolhendo e as “não-coisas” estão se multiplicando, tornando o entorno progressivamente impalpável. Um software vale cada vez mais e um hardware cada vez menos. De produtores estamos nos transformando em funcionários. O novo homem não precisa mais de mãos, mas de dedos para teclar, para decidir e escolher. Ele não quer possuir e sim vivenciar uma experiência.

 

A tecnologia digital trouxe uma nova imagem, sintetizada eletronicamente, resultante de um código adimensional ou “quântico” que difere da anterior, representativa do mundo. Ela agora é alimentada pelo texto e portanto é um produto da história. Segundo o autor, o objetivo do ser humano no passado era “formalizar o mundo existente”; hoje ele almeja “realizar as formas projetadas para criar mundos alternativos”.

 

Flusser aponta duas tradições básicas. A ocidental e a oriental. A primeira se desenvolve a partir de um pensamento linear, de uma lógica codificada e promove a ciência com o intuito de controlar a natureza. Já a oriental entende o homem como um ser que emerge do mundo para experimentá-lo. Ela tem uma abordagem estética e está calcada em uma vivência onde o homem e o mundo se fundem.

 

É preciso reconhecer que a ciência ocidental se desenvolveu graças a um distanciamento proporcionado pela teoria[8]. Uma síntese que reúne a abordagem ocidental com a oriental parece estar surgindo e proporcionando a substituição dos códigos alfa numéricos por novos códigos híbridos, como por exemplo os códigos digitais de computadores. Com isto, a relação de simbiose entre o homem e a ferramenta pode ser revertida. É possível que no futuro as fabricas se tornem locais de aprendizagem já que dependerão cada vez mais do ser humano para extrair algo de suas ferramentas tecnológicas, que por sua vez exigirão uma aprendizagem teórica crescente por parte de quem as comanda. Há esperanças de que um novo sentimento existencial possa surgir em resposta a este fenômeno, de que ele se manifeste com a tomada de consciência da efemeridade de toda criação e de nossas responsabilidades em relação à sobrevivência do planeta. Talvez seja possível  restabelecer um equilíbrio entre o amadurecimento intelectual humano e a natureza.

 

Como alternativa pessimista para o futuro, pode-se supor que a incorporação do pensamento conceitual pelo imagético seja malsucedida. Isto provocaria uma deterioração da espécie humana em decorrência de uma despolitização crescente de uma sociedade de consumo, do totalitarismo de uma mídia de massa, e de uma conseqüente alienação generalizada.

 

Mas existe também a possibilidade de o pensamento imagético incorporar positivamente o pensamento conceitual e promover assim um tipo de comunicação mais elaborado, com a qual o homem assuma conscientemente uma posição formalista que instaure um novo senso de realidade.

 

O ato de contar visa alcançar uma síntese. O escrever não. Vivemos uma revolução cultural: de sujeitos de um só mundo, estamos nos transformando em projetos de vários mundos. Nos falta talvez aprender a contar...

 

A presença constante de Flusser se faz sentir ao longo de toda a obra. O texto aberto, bem estruturado e fluido nos convida a refletir sobre desafios importantes que a humanidade vem enfrentando. Com muita vivacidade e muita verve, ele transmite suas dúvidas e questionamentos, aponta suposições e previsões apocalípticas, como se quisesse sacudir o leitor antes de oferecer a ele algum alivio. Só então sugere alguma possibilidades de saída. Em tom levemente debochado e sarcástico, Flusser coloca com desenvoltura e clareza seu modo de pensar, de ver, suas interpretações, questionamentos e dúvidas, tecendo raciocínios labirínticos e estendendo pequenas armadilhas e provocações. Fatalista e esperançoso ao mesmo tempo, o autor deixa talvez transparecer uma certa impaciência e desilusão. Afinal, estas dificuldades do mundo contemporâneo foram criadas por nós mesmos.

 

Ao introduzir uma questão, o autor desenvolve um pensamento livre de censuras impostas por limites da lógica. Depois de permitir que o fluxo de idéias se manifeste, ele reorganiza e define os contornos de modo articulado e coerente. Sentimo-nos dentro do processo de nascimento e configuração da obra vivenciando esta experiência de criação intelectual junto com o escritor. Temos a impressão de que Flusser escreve não só para compartilhar suas idéias, mas que para ele, o ato de redigir é uma forma de atrair e configurar o pensamento.

 

O autor vê a civilização contemporânea como um provável resultado de um processo em espiral que vai da imagem para o conceito e depois volta para a imagem. Reunindo densidade e leveza, ele desenvolve sua obra com percurso análogo. As palavras constantemente nos evocam imagens de seus pensamentos. Se ele não se atém a fundamentar suas idéias referindo outros autores, nas entrelinhas ele revela uma grande erudição e um  conhecimento profundo da filosofia.

 

Monique Allain, 2009.



[1] De caráter concreto e transitório
[2] Que envolve o intelecto e cujo significado é eterno
[3] Ou abstrato
[4] Que representam o significado das coisas
[5] Ou seja, em linhas
[6] Superfície
[7] Flusser define este olhar como o “segundo olho da alma”
[8] Ou pela razão

 


terça-feira, 24 de julho de 2012

EDUCAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Resumo / Abstract

O texto consiste em um relato das colocações de Miriam Vilela[1], Pedro Roberto Jacobi[2], Shagun Mehrotra[3] e Vincent Defourny[4] mediadas por Rose Marie Inojosa[5] na mesa redonda Educação para o Desenvolvimento Sustentável. Os participantes discorreram sobre os principais desafios socioambientais enfrentados pelas grandes cidades e sobre as iniciativas empregadas na busca de soluções para os problemas apontados. Eles destacaram o papel essencial da educação neste processo, a necessidade urgente de se investir em medidas criativas de aprendizagem e em modos efetivos de aplicação destas medidas para diminuição dos efeitos negativos resultantes do crescimento desenfreado destas cidades. O texto se encerra com uma pequena reflexão sobre as questões colocadas e com a proposição da experiência artística como alternativa nos processos de aprendizagem para a expansão de uma consciência mais cidadã.

INTRODUÇÃO
A mesa redonda Educação para o desenvolvimento sustentável versou sobre a necessidade de mobilização por parte das instituições de ensino em busca de recursos criativos multidisciplinares para elaboração de programas de conscientização da população sobre as questões que envolvem sustentabilidade.
Participaram da mesa, Shagun Mehrotra, representante do Departamento de Planejamento Urbano da “Graduate School of Art and Sciences” da Columbia University em Nova York, Vincent Defourny, representante da UNESCO em Brasília, Pedro Roberto Jacobi, dirigente de pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo, e Miriam Vilela, diretora da “Carta da Terra” [1], Mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard, brasileira radicada na Costa Rica desde a década de 1990. A mesa foi mediada por Rose Marie Inojosa, representando a Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz, UMAPAZ.

CASOS APRESENTADOS
Shagun Mehrotra – Columbia University
Shagun Mehrotra, representante do Departamento de Planejamento Urbano da “Graduate School of Art and Sciences” da Columbia University em Nova York, iniciou as apresentações, apontando os principais problemas que estão se desenhando na contemporaneidade por conta da ação predatória do ser humano sobre o ambiente. Ele destacou a educação como abordagem essencial para reverter este quadro.
Segundo o First Assessment Report on Climate Change in Cities (ARC3), publicado pela Cambridge University Press, um dos principais desafios para o desenvolvimento sustentável no mundo são o incremento de favelas. Estima-se que em 2050 haverá um aumento de três milhões de pessoas pobres nas cidades. Outro ponto a ser destacado é a constatação de que o clima está remodelando cidades pobres em situações de risco, particularmente na África. Mais um desafio para o futuro é o fato de que as maiores economias do mundo estarão voltadas para um mercado emergente de populações de baixa renda. É essencial que estes aspectos sejam levados em conta na busca por soluções sustentáveis e que as propostas se apoiem em bases cientificas para definição de planos de ação. Sabe-se que as cidades produzem mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa e são extremamente vulneráveis aos impactos provocados pelas alterações climáticas.
No entanto as pesquisas sobre as transformações climáticas têm negligenciado o estudo relacionando-o diretamente à questão urbana, e, no entanto, a maioria da população do mundo é urbana e se concentra nas regiões costeiras ou próximas de rios. ARC3 reuniu mais de 100 autores de mais de 50 cidades no mundo, cientistas de diversas áreas tais como geógrafos, urbanistas, engenheiros, especialistas em política, em questões climáticas, para desenvolver um estudo interdisciplinar sobre as mudanças climáticas nas cidades e as implicações das mesmas, refletindo a necessidade urgente tanto de países desenvolvidos como em desenvolvimento de encarar esta questão de frente.
Vários aspectos envolvendo sustentabilidade foram abordados pelo ARC3. A primeira seção procura determinar um quadro de riscos climáticos, no qual são assinalados pontos de vulnerabilidade nas cidades de Buenos Aires, Delhi, Lagos e Nova York. Através de estudos de observação e de projeção, dados são levantados e inferidos sobre o incremento de precipitações, temperaturas e nível do mar. Na seção seguinte são abordadas as questões que envolvem energia, recursos hídricos, transporte e saúde e sobre as implicações que mudanças climáticas têm sobre estas questões. Reflexões sobre os riscos, sobre os possíveis mecanismos de adaptação enriquecem os conteúdos abordados e uma variedade de exemplos ilustra estratégias adotadas que tiveram resultados interessantes. Na terceira seção, os tópicos abordados são o uso da terra e as políticas públicas. Esta se constitui de um estudo sobre como ocorrem ocupações de zonas específicas, de que modo a densidade populacional interfere no planejamento e na gestão urbana, e de que modo as políticas públicas atuam na tentativa de garantir a adaptação frente às mudanças climáticas.
Os riscos são determinados por uma função entre fatores naturais climáticos, vulnerabilidade física e social das cidades e políticas institucionais que respondem às mudanças climáticas.
Dados de diversas cidades tais como Atenas, Delhi, São Paulo, Shangai, foram colhidos e analisados, e as projeções para 2050 são de incremento de 1 a 4º C.
As cidades constituem laboratórios de inovações com ações de longo prazo. É necessário que abordagens no âmbito global, nacional, municipal e educativo sejam empreendidas.

Vincent  Defourny – UNESCO Brasil 
Vincent Defourny, representante da UNESCO em Brasília, abriu sua apresentação salientando o fato de que coisas importantes no mundo estão acontecendo e têm impactado sobre milhões de pessoas. De acordo com dados da UNICEF, 262 milhões de pessoas foram afetadas por desastres climáticos em 2004. Segundo a IUCN, os níveis de dióxido de carbono na atmosfera terrestre aumentaram aproximadamente 30% nos últimos 200 anos. Foram destruídas mais de 80% das florestas naturais (World Resources Institute), e 20 a 30% das espécies vegetais e animais poderão se extinguir se a temperatura global aumentar mais que 1,5 a 2,5 o C (IUCN).
Em resposta, um debate internacional, preocupado com estas questões vem moldando uma cultura de paz. Conforme levantamento da UNESCO, de 1968 a 2009, diversos foram os eventos internacionais preocupados em discutir as questões climáticas. O esquema abaixo, fornecido pelo palestrante indica a sucessão destes eventos.

Compartilhar informações e boas experiências constitui medida relevante de estabelecer referenciais e pensar a partir dos mesmos, programas educativos eficientes.
A educação para o movimento sustentável é urgente. Estamos em um momento de crise e necessitamos abordar este desafio de modo interdisciplinar e holístico e neste âmbito, a dimensão ética é essencial. É evidente que a forma como se educa está ultrapassada e necessitamos urgentemente atualizar o paradigma da educação.
É preciso criar um contexto de sustentabilidade com muita qualidade e ao longo da vida. As cidades devem se tornar cada vez mais cidades educadoras, capazes de conversar com todos seus habitantes. Como educadores, devemos tornar “verde” nossa forma de trabalhar; não se trata apenas de ensinar, mas de dar o exemplo em favor de uma cultura de paz. Isto requer a criação de situações de vivência dentro do espaço e de encontro com a alteridade.
Estudiosos vêm se empenhando em descobrir formas eficientes de se abordar a educação sustentável. As políticas públicas voltadas para uma cultura de paz estão diretamente relacionadas com este processo. Alguns se referem à educação sustentável como educação sobre o ambiente, o que se entende por uma busca em se compreender a estrutura e funcionamento do mesmo. Outros falam de educação no ambiente, situação que envolve uma experiência direta com o espaço no momento do aprendizado. Também é importante pensar na educação para o ambiente, incluindo nesta forma de apresentar a questão, uma preocupação no sentido mais amplo de não só buscar entendê-lo, mas também de assumir uma postura responsável de querer protegê-lo. Uma quarta forma de abordar a questão da educação sustentável é pensar a educação a partir do ambiente. Neste caso, o ambiente é um ponto de partida para se apreender conhecimentos. Defourny destaca a importância em se integrar todos estes ângulos na abordagem educativa.
  
Pedro Roberto Jacobi – USP
Pedro Roberto Jacobi, dirigente de pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo, introduz sua apresentação alertando para o fato de que vivemos em uma sociedade de risco, em decorrência de uma nova realidade globalizada na qual há um aumento de complexidade e incerteza e os riscos estão multiplicados.
Uma série de mudanças está em curso. As formas de transmissão de informação e conhecimento não são as mesmas. Não se trata mais de abordar os assuntos de modo independente, mas interdisciplinar. O trabalho está mudando, há uma série de transformações tecnológicas, existem novas formas de organização e de gestão. Acompanhando todas estas reconfigurações, os valores também estão mudando e novas exigências éticas estão surgindo.
Cabe então questionarmos o que agora está em jogo e procurarmos trabalhar em conjunto na busca de soluções. É fundamental que todos os setores da sociedade estejam envolvidos e integrados no desenvolvimento de programas sustentáveis. A educação em uma sociedade voltada para o conhecimento deve trabalhar com uma nova lógica calcada no esforço conjunto para concepção de projetos coletivos. O processo é composto basicamente de quatro etapas. A primeira investe no ato de “conhecer” e corresponde ao estágio em que a informação é adquirida de modo qualitativo. A segunda, diz respeito ao “fazer” e implica em associar a técnica ao conhecimento. Envolve ações e exige que responsabilidades sejam assumidas. A terceira, “conviver”, se dá apoiada na interdependência e no diálogo com o “outro”. Ela se constrói sobre uma cultura de paz calcada na aceitação das diferenças, na compreensão da riqueza que a diversidade propicia. É então que chegamos à quarta etapa onde o desafio é “ser”, é ter autonomia como indivíduo com uma postura ética em relação à coletividade.
Uma “sociedade aprendente”, termo empregado por Pedro Roberto Jacobi, deve incluir uma multiplicidade de formas de aprendizagem, deve estar atenta às novas demandas que envolvem situações de interatividade, mobilidade, conversibilidade, conectividade, diversidade e globalismo. É essencial que aprendamos a utilizar as novas tecnologias de forma favorável aos preceitos sustentáveis, que se estabeleça um diálogo científico de aprendizagem, e que os conteúdos desta aprendizagem sejam acessíveis ao maior numero de pessoas possíveis. Para tanto, é extremamente útil explorar os recursos de comunicação que as redes sociais e as comunidades virtuais oferecem.
Incorporar os novos paradigmas do conhecimento significa encarar o conhecimento como elemento chave para as transformações necessárias, investir no desenvolvimento de capacidades, reconhecer como prioritária a necessidade de oferecer uma educação de qualidade para a população, não subestimar a complexidade dos processos formativos, e procurar transformar a tecnologia na educação, um fator que ainda é de desequilíbrio em função de uma grande exclusão digital, em algo acessível a toda a população.
Os temas de uma educação sustentável em pauta são: governança ambiental, o papel do estado e da sociedade civil, atores sociais e conflitos de interesse, e finalmente, metodologias de aprendizagem social. A Governança Ambiental, mais do que a gestão do Estado, envolve uma articulação dos agentes econômicos, sociais e civis.
A noção de sustentabilidade implica em definir um conjunto de iniciativas com interlocutores ativos envolvidos com a sociedade e com uma preocupação genuína pelo seu bem estar, através de práticas educativas dentro de um processo de diálogo informado no qual o sentimento de co-responsabilidade e de constituição de valores éticos esteja presente.
O desenvolvimento sustentável demanda uma aprendizagem social. Devemos investigar como as pessoas se tornam mais sensíveis às formas alternativas de conhecer e introduzir nos mecanismos de aprendizagem procedimentos que favorecem esta sensibilização. Para isto, a criação de espaços que estimulem o diálogo, a reflexão prática entre os atores sociais, o aprendizado e a ação coletiva, é de suma importância.
Pedro Roberto Jacobi encerra sua apresentação assinalando aspectos a serem pensados na busca de uma realidade mais sustentável. O primeiro consiste na necessidade de transformação dos modelos mentais frente à crise da biosfera e aos problemas atuais. O segundo corresponde ao desafio que está à frente das instituições de ensino e capacitação na busca de estratégias que desenvolvam uma mentalidade mais sustentável na população. E finalmente ele aponta a necessidade de refletirmos sobre o sistema de ensino, sobre seu descompasso frente às transformações sociais e, portanto, sobre suas dificuldades no acompanhamento e adequação de acordo com as mudanças.

Mirian Vilela – ECI – UPeace
Mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard, brasileira radicada na Costa Rica desde a década de 1990, Miriam Vilela introduz sua apresentação indagando quais seriam possíveis processos de aprendizagem voltados para uma educação mais formadora e não apenas informadora. O que é necessário para reorientar a educação em direção a uma maior consciência sustentável?
Assinalando um desenvolvimento semelhante ao de Pedro Roberto Jacobi para o processo de aprendizagem, quando este menciona as quatro etapas, “conhecer”, “fazer”, “conviver” e “ser”, Miriam Vilela destaca os seguintes estágios em uma educação de fato transformadora: a conscientização de valores, o conhecimento dos mesmos com profundidade, a aplicação e finalmente, ações em favor dos mesmos.
A palestrante propõe um tripé como base de apoio para a educação, calcado na responsabilidade ética com visão sustentável, em uma abordagem necessariamente sistêmica e não fragmentada de sustentabilidade, e na integração da lógica à emoção. Para que a educação seja de fato transformadora, é fundamental que a esfera sensível e afetiva do sujeito seja envolvida no processo de aprendizagem.
Nossa subjetividade como indivíduos que compõem uma sociedade determina prioridades, interesses e perspectivas particulares. No mundo, em um país, em uma organização, ou mesmo em uma família, estes elementos são diferentes. É essencial que eles sejam constituídos sem que percamos de vista nossa natureza coletiva, sem que deixemos de enxergar o “outro”, respeitando uma política de alteridade. Devemos conduzir nossas prioridades individuais em direção a um bem comum. Para que isto aconteça, existem três objetivos educacionais fundamentais. O primeiro diz respeito à conscientização dos problemas ambientais, sociais e econômicos. O segundo corresponde à aplicação de princípios e valores. O terceiro consiste em um convite para atuar em múltiplas instâncias tais como escolas, sociedade civil, setor privado, governos e no âmbito individual de cada cidadão.
Miriam Vilela é diretora da “Carta da Terra”, instrumento desenvolvido na década de 1990 que condensa valores discutidos em foros internacionais por especialistas de diferentes áreas. Estes reuniram esforços para relatar uma “carta” que servisse como marco ético em direção à sustentabilidade e um instrumento de educação para uma maior conscientização de nossas responsabilidades com o meio e com a alteridade. A “Carta da Terra” é também uma iniciativa de mobilização internacional, uma declaração de princípios éticos e sustentáveis, reconhecida pela ONU, por governos, empresas e ONGs nos cinco continentes.
Miriam Vilela encerra sua apresentação realçando a natureza sistêmica da “Carta da Terra” e seu empenho em defender o respeito e cuidado com a comunidade viva. Isto somente é possível na intersecção de três fatores: A integridade ecológica, a justiça social e econômica, e uma situação de democracia e paz.

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
Milton Santos, nos anos 70 antecipou a problemática atual que envolve homem e espaço, destacando este último como ponto nevrálgico nos conflitos da era pós-moderna. O autor enxergou os reflexos na geografia do planeta dos problemas que já se desenhavam naquele momento histórico. Em sua publicação Pensando o Espaço do Homem[1], discutiu as relações entre o ser humano e seu meio e definiu o espaço como a “soma dos resultados da intervenção humana”. Precisamos estar atentos, sermos flexíveis, nos transformarmos, e permanentemente reorganizarmos nossa sensibilidade e percepção de modo a nos adaptarmos às reconfigurações do mundo. Capra em 1882 também alertou para os riscos que o descompasso entre os avanços na compreensão da fisiologia do mundo e os modelos empregados nas práticas sociais, políticas e econômicas representava[2]. Hoje os conflitos entre o homem e o espaço se agravaram. O desenvolvimento da consciência humana não acompanhou os progressos científicos.
Os avanços tecnológicos do século XX provocaram mudanças radicais rompendo com as distâncias espaciais e temporais e favorecendo os deslocamentos e a transmissão da informação. Se a comunicação nos nossos dias é muito mais eficiente do que antes do advento das mídias digitais, se as distâncias não constituem mais uma barreira e não solicitam mais um intervalo de tempo para transmissão de informação, parece, contudo, que as tecnologias, a serviço de um sistema de consumo capitalista globalizado, podem constituir uma ameaça por sua capacidade elevada de manipular as massas em favor de seus interesses. As distâncias hoje não nos protegem mais de catástrofes provocadas diretamente ou indiretamente pela ação do homem, tais como o aquecimento global, os acidentes nucleares de Tchernobil e Fukushima. As guerras, os riscos futuros de escassez nos recursos hídricos, as projeções que alertam sobre a falta de energia e alimento, são uma realidade que não pode mais ser ignorada, são reflexos do desajuste na relação entre o homem e a alteridade, entre o sujeito e sua inserção dentro de um contexto de coletividade. A tecnologia empregada de forma indevida funciona como agente multiplicador dos efeitos negativos sobre o espaço. Ela não só agrava, mas também acelera a crise na relação entre o homem e o espaço. Dirigindo a produção para interesses distantes e minoritários, o individuo tornou-se estranho ao seu espaço, não se reconhece mais como pertencente a ele[3].
Não se trata aqui de negar os benefícios proporcionados pelos avanços tecnológicos, muito menos de fazer uma apologia das condições de vida no passado, quando as formas de comunicação aconteciam exclusivamente de modo direto, sem a intermediação da máquina. A alta tecnologia possibilita uma expansão de possibilidades e representa um ganho se empregada de forma a promover o bem estar da coletividade. Cabe aqui lembrar a colocação de Miriam Vilela que destaca a importância em se conduzir as prioridades individuais em direção a um bem comum.
As ciências exatas, humanas e biológicas têm se aplicado em investigar as causas das transformações na biosfera, das catástrofes naturais, das devastações e desastres ecológicos, do incremento da violência das cidades, da diminuição de recursos hídricos e energéticos, da miséria e do incremento de incidência de doenças psíquicas e emocionais. Se nossas atitudes são determinantes na configuração do espaço e nas relações estabelecidas com o meio e com tudo o que dele faz parte (o outro), as propostas sustentáveis estimulam a constituição de novas formas de apreensão e relação com o mundo, favorecendo reposicionamentos conceituais, culturais e de valores, para o alcance de uma expansão da consciência e dos afetos. Uma atitude sustentável depende de uma visão sistêmica e transdisciplinar com atualização permanente dos modos de ver, dos valores e das formas de interagir com o mundo.
Cabe aqui destacar a colocação de Milton Santos de que o homem para se reconhecer em seu espaço e consequentemente tornar-se cúmplice dele, deve participar de sua construção. A preservação pode ser entendida como uma forma de construção. Os argumentos de Pedro Roberto Jacobi ao propor a integração de quatro modos de abordagem na educação, quando salienta a importância em se pensar a educação no ambiente, se afinam com as colocações de Milton Santos. A educação “imersiva” traz vantagens consideráveis e pode ser mais explorada. Ela não só proporciona uma experiência direta do sujeito no ambiente, aspecto este que possibilita a formação de vínculos mais estreitos entre ambos, como também propicia uma situação de encontro e de troca com a alteridade. Talvez assim seja possível alcançar uma cumplicidade e uma relação de afetividade e de intimidade entre o sujeito, o meio e o outro, de modo que o sentimento de pertencimento do indivíduo dentro de uma esfera coletiva seja ampliado.
A necessidade urgente de transformação em direção à constituição de uma mentalidade coletiva mais consciente, generosa e sustentável está subordinada à educação. A emoção, conforme as colocações de Miriam Vilela com as quais compactuamos, é um elemento essencial na aquisição de valores e contribui de forma radical na apreensão de conteúdos e princípios de sustentabilidade. A experiência transformadora é a que emociona. Nas práticas educativas, é, portanto, essencial integrar o fator emoção à lógica e ao intelecto.
Esta constatação qualifica a arte como um recurso de valor que não deve ser negligenciado em programas de educação para um desenvolvimento sustentável. A experiência artística pode constituir um poderoso agente para expansão de uma consciência mais cidadã A força de uma obra artística se dá justamente na junção de seu caráter sensível e poético aos seus conteúdos e significados. Seu poder de transformação lhe confere também um caráter político-social.
Depois da segunda guerra mundial, a arte assumiu um compromisso ético e um papel de agente transformador em busca de alternativas de renovação que contribuem nos processos de evolução da consciência, para construção de um mundo mais generoso que preservasse o ser humano do sofrimento. Há uma necessidade fundamental em todo indivíduo de partilhar a experiência estética da humanidade. Em 1969, a publicação da UNESCO “Les arts et La vie” já chamava atenção para o papel da arte como agente transformador na sociedade[4]. Segundo esta, a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas estabeleceu que “todo indivíduo tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade e de desfrutar das artes” [5]. Para o historiador e crítico de arte inglês Herbert Read, a arte e a sociedade não são dissociáveis. Arte é uma força de coesão social cuja ausência poderia trazer um golpe fatal à civilização. Ele propôs “a arte pela educação” [6].
A arte, poderoso agente transformador da sociedade tem seu alcance ampliado quando abordada interdisciplinarmente. Integrada a programas educativos voltados para a apreensão de valores e para a adoção de uma postura sustentável, é uma alternativa de grande potencial. O artista é um proponente. Ao interpretar o mundo com sua percepção própria, ao materializar em sua obra sua subjetividade, transmite como vê este mundo, suas dúvidas, críticas e questionamentos, e provoca com isso reflexões que possibilitam mudanças de paradigmas, atualizações na compreensão das dinâmicas espaço-temporais e nas relações com o outro.
Arte e vida são inseparáveis. Se a arte está no quotidiano e se pronuncia frente aos desafios do seu espaço e do seu tempo, sustentabilidade hoje é um assunto que não pode estar fora da sua pauta. A inclusão de temas que relacionam arte, sustentabilidade e educação, tanto nos eventos voltados para a comunidade artística como para os promovidos pelos educadores e pesquisadores socioambientais, favorece o diálogo entre estas áreas, possibilita ações conjuntas e amplifica o potencial agenciador das mesmas.
Suely Rolnik defende a arte, forma de expressão, de produção de linguagem e de pensamento, como uma possível alternativa de agenciamento, contágio e transformação:
O exercício do pensamento/criação tem, portanto, um poder de interferência na realidade e de participação na orientação de seu destino, constituindo assim um instrumento essencial de transformação da paisagem subjetiva e objetiva. (ROLNIK, 2006, p. 3).
Um exemplo de produção artística que através da poética se propõe a investir na construção de uma consciência coletiva mais sustentável é o trabalho recente da artista espanhola Darya von Berner, Internation Cloud Flagi. A obra foi montada em janeiro 2012 no Palácio da Paz em Haia, na Holanda, local que abriga o Tribunal Internacional de Justiça, principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas, e o Tribunal Permanente de Arbitragem14. Trata-se de uma nuvem de verdade que se assume como bandeiraii. A artista investindo em favor de uma cultura de paz, reverte o significado territorial contido neste símbolo nacionalista que é uma bandeira, e propõe pensar o mundo de uma maneira mais holística e generosa, sem posses e sem fronteiras. A nuvem foi obtida com a ajuda de tecnologia inovadora de nebulização que envolve alta pressão para nebulização de água em micropartículas que flutuam no ar. O mastro emite luz de modo a aumentar a visibilidade das gotas de água. Tanto os significados contidos no trabalho, como sua concepção e estrutura física envolvem processos sintonizados não só com uma elevada consciência político-social, mas também ambiental e ecológica.

Darya Von Berner, International Cloud Flag Registros da obra em funcionamento na entrada do Palácio da Paz em Haia, Holanda, 2012. Fotografia de autoria e fornecida por Tom van Vliet, curador do projeto.



Nossa sugestão para os próximos eventos do C40 é incluir como tema de reflexão e de discussão, o tópico arte & sustentabilidade.
  
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Editora Cultrix, 1982.
DEFOURNY, Vincent. Climate changes & education for sustainable developmentMaterial de apresentação fornecido pelo palestrante. 2011.
JACOBI, Pedro Roberto. Novos rumos da educação na sociedade do conhecimento e para a sustentabilidade. Material de apresentação fornecido pelo palestrante. 2011.
MASP. 6 bilhões de outros. Folder da exposição. 2011.
MEHROTRA, Shagun. Climate changes and cityes: knowledge for action. Material de apresentação fornecido pelo palestrante. 2011.
ROLNIK, Suely. Geopolítica da Cafetinagem [2006]. Disponível em: <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf. Acesso em 12/11/2010>.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2007.
UNESCO. Les arts et la vie. Paris: Imprimeries de Bobigny, 1969.
VILELA, Miriam. Valores e princípios para sustentabilidade. Material de apresentação fornecido pelo palestrante. 2011.


[1] SANTOS, 2007.
[2] CAPRA, 1982.
[3] SANTOS, 2007.
[4] UNESCO, 1969.
[5] Tradução nossa de: “Toute personne a le droit de prendre part librement à La vie culturelle de La communauté [et] de jouir des arts”. (UNESCO, 1969, p.9).
[6] Ibid.

[1] A “Carta da Terra” é instrumento desenvolvido na década de 1990 que reúne valores discutidos em foros internacionais por especialistas de diferentes áreas. Estes condensam esforços para relatar uma “carta” que servisse como marco ético em direção à sustentabilidade e um instrumento de educação para uma maior conscientização de nossas responsabilidades com o meio e com a alteridade. A “Carta da Terra” é também uma iniciativa de mobilização internacional, uma declaração de princípios éticos e sustentáveis, reconhecida pela ONU, por governos, empresas e ONGs nos cinco continentes.




[1] Diretora da “Carta da Terra”, Mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard, brasileira radicada na Costa Rica desde a década de 1990.
[2] Dirigente de pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo.
[3] Representante do Departamento de Planejamento Urbano da “Graduate School of Art and Sciences” da Columbia University em Nova York.
[4] Representante da UNESCO em Brasília.
[5] Representando a Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz, UMAPAZ.