segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

ENTROPIA E ARTE II

Procedimentos artísticos que envolvem conceitos de entropia. Alguns exemplos da modernidade. Estudo introdutório - 2009

O termo entropia vem da segunda lei da termodinâmica que observa nos sistemas fechados o aumento irreversível de desordem e homogeneidade, ou seja a transformação da energia em formas que diminuem sua força de trabalho[1] (CAPRA, 1982). A entropia é uma indicação quantitativa de aleatoriedade. Existe um único e irreversível sentido temporal em direção ao caos e à desorganização (HAWKING, 1988).
            Uma reflexão sobre o papel da entropia e suas formas de expressão na arte torna-se relevante quando constatamos que este conceito, amplamente utilizado no contexto artístico, é responsável pela afirmação de que o universo caminha para o caos. Tratando-se de um coeficiente de desordem dentro de um sistema, a entropia pode ser utilizada como parâmetro para se analisar a historia da arte e identificar as forcas que interferem no seu rumo.
O assunto é amplo e permite numerosas abordagens tais como a escolha do conceito como tema de investigação, um estudo dos mecanismos de linguagens desconstrutivas e a subjetividade na interpretação destes mecanismos. O texto aqui apresentado compreende uma reflexão introdutória sobre as implicações dos procedimentos artísticos com o conceito de entropia e o caráter subjetivo das interpretações, conforme o ponto de vista, o momento histórico e suas circunstancias, utilizando como referência exemplos da modernidade.
Ao compreender melhor os ciclos de renovação da arte e, talvez esta aproximação permita perceber com um pouco mais de clareza o que é contemporâneo hoje.


Ação simultânea de entropia e forca organizadora

            O homem sempre em busca da imortalidade, para combater a tendência natural entrópica de envelhecimento e deterioração[2], usa a força organizadora do intelecto (CAPRA, 1982). Ao mesmo tempo segue seu instinto, impulso antagônico com o qual procura o equilíbrio e a simetria10, situação entrópica nos sistemas físicos. A intuição está ligada ao inconsciente ao passo que o intelecto ao consciente (ZAMBONI, 2006). A ação simultânea destas duas forças[3], estabelece um “espaço entre” no qual os movimentos de transformação na história são modulados.
Para que uma nova ordem aconteça, é necessário que ocorra antes uma revolução (ARNHEIM, 1974).
De um modo geral e simplificado, ao refletir sobre os procedimentos artísticos podemos observar no mesmo trabalho, o uso simultâneo de mecanismos entrópicos e a ação de uma força organizadora neguentrópica. O artista, ao fazer uso da inteligência e colocar uma intenção em seu trabalho age contra a entropia. Mas, dotado de uma visão de longo alcance, também utiliza mecanismos entrópicos para quebrar estruturas e valores estratificados na busca de novas possibilidades. Permitir a ação da entropia através do uso da intuição e da incorporação do acaso nos processos de criação coloca o ato criativo dentro de uma esfera real de existência na qual devemos lidar constantemente com contingências não controláveis. Ao agir em diálogo com o meio externo, o artista se faz efetivamente presente no espaço-tempo ao qual pertence. O erro, manifestação entrópica, abre possibilidades para o surgimento de novos caminhos (NACHMANOVITCH, 1993).
A sociedade para adaptar-se às constantes mudanças, precisa ser flexível, sofrer transformações.


Mecanismos entrópicos e neguentrópicos e constituição de ciclos de renovação

Este assunto é no entanto bem mais complexo. Procedimentos que envolvem mecanismos entrópicos e neguentrópicos respondem às circunstâncias do momento e às estratégias escolhidas para lidar com as diversas situações que se configuram. O impulso criativo pode ser gerado ao mesmo tempo tanto pela vontade de romper com padrões ultrapassados e libertar-se de estruturas solidificadas como visando compor novas ordens. A variável está no grau de envolvimento de cada uma destas forças e caracteriza as fases da história. A redundância é necessária à assimilação de um novo conceito que se fortalece até alcançar maturidade. Ao adquirir um contorno ele simultaneamente adquire rigidez; isto faz com que para prosseguir com as transformações inerentes à existência de vida[4] ele seja posteriormente fragmentado. As mudanças no mundo exercem uma pressão crescente contra os sistemas enrijecidos até seu estilhaçamento. O clima de instabilidade que acompanham estas situações, traz a busca de um novo equilíbrio[5], desencadeia movimentos de reconstrução para formação de novas configurações (PIGNATARI, 2003). A história se processa com vários vetores de acontecimentos que se sobrepõem, cada qual com movimentos próprios para formar um oceano de correntes nas quais procedimentos entrópicos e de construção se mesclam, se intercalam e resultam m ciclos de renovação. Os valores mudam e determinam a continuação da historia.
Períodos de repressão ou de acúmulos de tensões tais como as Grandes Guerras e Dadá[6], ao contrário, provocaram atitudes que buscavam a ruptura e a desconstrução do sistema vigente. Já, a necessidade de movimentos de reconstrução em circunstâncias que sucederam grandes abalos, guerras e revoluções, estimulou a escolha preponderante por parte dos artistas de procedimentos que privilegiaram a ordem e a síntese. Tanto o Suprematismo[7] quanto o Construtivismo[8] russo podem servir de exemplo para este segundo caso.
A ação da força organizadora associada à ação da entropia dentro de uma rede de sistemas interligados e sintonizados possibilita a manutenção de um equilíbrio dinâmico e a constante formação destes ciclos (CAPRA, 1982). A comunicação entre os sistemas que compõem a rede tem portanto um papel fundamental na preservação desta forma “sutil” de equilíbrio. Supõe-se que este processo também se aplique às dinâmicas sociais e justifique a valorização que se dá hoje aos meios de comunicação.


A transformação do pensamento e a subjetividade nas interpretações históricas

A noção atual de história da arte começa quando ela se vincula ao campo de linguagem na passagem do século XIX para o XX. As vanguardas no início do século XX assumindo uma postura desconstrutiva, romperam com os ideais de uma arte pela arte e inseriram a produção artística dentro do contexto de uma realidade de vida, conectaram-na com todos os campos que atuam na existência do ser humano. A pesquisa em arte não se restringiu mais apenas aos procedimentos, passou a envolver todo o processo artístico e a ser compreendida e analisada dentro de uma esfera interdisciplinar, envolvendo além do seu campo, todas as ciências (MELLO, 2008).
A reprodutibilidade técnica da obra de arte e a perda de sua áurea no século XIX promoveram o advento de uma cultura de massa.  A elite não detinha mais exclusividade no acesso à esfera cultural. As massas exerceram um papel determinante nas transformações dos hábitos e costumes (BENJAMIN, 1994).
No entanto, um aspecto que não deve ser ignorado quando se utiliza o conceito de entropia para leitura e compreensão de qualquer processo, é a existência do componente subjetivo intrínseco ao julgamento. O que vem a ser entrópico ou não, o grau atribuído à desordem é relativo e depende da configuração de quem se coloca a questão, do seu ângulo de visão, e da sua inserção no espaço-tempo. Disto depende a leitura que faz sobre os fatos. O novo, não familiar é visto como caótico e portanto se lhe atribui um alto índice de desordem. A não compreensão de uma nova ordem pode confundir e gerar como interpretação a crença na ausência de coerência e dos significados nela implícitos. Somente o distanciamento temporal dos fatos permitirá enxergar com mais clareza os pontos em comum que revelarão um novo sentido a um conjunto de atos aparentemente desconectados e caóticos.
Susan Buck-Moss em seu texto Walter Benjamin: entre moda acadêmica e Avant-garde, aponta a transitoriedade do sentido histórico:
“O sentido histórico é transitório, dependendo não tanto do passado, como do presente, do estado real das coisas. Assim, a história não pode ser abordada como um exercício acadêmico, como se dissesse respeito a uma raça de humanóides que existiram uma vez em Marte. Estamos na história e seu tempo não acabou. Fazemos a história em ambas as direções temporais, passado e presente. O que fazemos ou não fazemos cria o presente; o que sabemos ou não sabemos, constrói o passado. Essas duas tarefas estão inextricavelmente vinculadas no sentido de que o modo como construímos o passado determina a nossa compreensão do curso presente.” (BUCK-MORSS, 1998, p.43).

Foster em seu texto Archives of modern art ressalta a distinção na forma como o modernismo foi visto e compreendido no pós-modernismo e como ele é visto e compreendido hoje. Se os documentos e vestígios, se as informações contidas nos arquivos da historia permanecem, as interpretações variam segundo o olhar da época e suas configurações. O confronto da critica com a produção permitiu-lhe novas interpretações sobre este período. O autor comenta a visão de Foucault sobre o papel do arquivo como sistema que governa a aparência dos enunciados e reúne memórias necessárias ao estudo da pratica artística, da função museológica e da historia da arte. O autor considera que a história da arte nasceu de uma dinâmica entre crises causadas pela fragmentação e reificações de tradições em processos de remontagem e reanimação (FOSTER, 2002).
Foster, ao confrontar visões dialéticas no período entre 1850 e 1950 e relacioná-las às esferas da pratica, da critica e da historia no campo da arte, evidencia as transformações do pensamento e destaca a possibilidade de novas interpretações sobre os arquivos da arte moderna.
A relação entre o artista e a critica se inicia com Baudelaire. Este considera a memória o principal critério em arte necessário como base para os grandes trabalhos artísticos subseqüentes cuja função é a construção de uma tradição artística consistente. Proust[9] compreende o museu como um local de reanimação e idealização espiritual das obras de arte. Adorno ao contrario considera os museus sepulturas que testemunham a neutralização da cultura e destacam o que ficou para trás. Ele enxerga o capitalismo como barbárie. Panofsky quer resgatar os fragmentos da historia da arte de modo a trazer o passado para o presente e reanimá-lo. Adorno critica a visão capitalista. Para Benjamin, a ruptura nas tradições provocada pela reprodução mecânica e pela produção em massa, contém ao mesmo tempo aspectos inicialmente destrutivos e potencialmente construtivos. Também condena a substituição de valores humanos e ecológicos por valores materiais ocasionada pelo capitalismo moderno, mas reconhece os benefícios da perda da aura e da idealização, a percepção de uma nova temporalidade traduzida em novas linguagens tais como o cinema, somente possíveis graças aos avanços tecnológicos. Malraux, vai mais alem: ele vê em todo o processo de mudança social e econômica resultante da industrialização, uma possibilidade de reorganização. Houve uma mudança radical entre o antigo museu de Baudelaire o museu de hoje. Não se trata mais de tentar reviver a arte do passado através da ativação da memória. Esta função esta sendo absorvida pelos equipamentos eletrônicos que podem ser acessados em qualquer parte do mundo. Na rede o museu é imaginário (FOSTER, 2002).
O conceito de progresso é histórico e surge com a modernidade. A exploração social o derruba e o transforma em mito do capitalismo e do liberalismo. A contemporaneidade não acredita mais no progresso (BRUCK-MORSS, 1998).
Ao se avaliar o grau de entropia nos processos artísticos também não se deve desprezar outro fator passível de causar distorções: dados anteriormente desconhecidos, por serem considerados irrelevantes ou por serem propositalmente ignorados pelo sistema vigente, muitas vezes não foram registrados nos arquivos. A memória que se constrói com os arquivos de uma época está sempre sujeita à manipulação. Conforme as transformações na percepção e na compreensão do mundo dados camuflados ou obscurecidos pelo esquecimento poderão vir a integrar posteriormente estes arquivos e alterar a significação dos fatos na historia. Susan Buck-Morss, utiliza o exemplo das constelações como metáforas de Benjamin para lembrar a implicação do poder na manipulação de uma memória coletiva:
“Numa sociedade ideal, conta-nos Benjamin, todas as estrelas seriam incluídas, e toda constelação seria legível. Mas na nossa isso é impossível. O poder distorce a visão dos céus, impondo seus pesados telescópios sobre certas áreas, de modo que sua importância se amplia, obstruindo outras de forma tão avassaladora, que ficam completamente invisíveis.” (BUCK-MORSS, 1998, p. 44).

Ela cita como exemplo a tentativa inicial dos bolchevistas engajarem a avant-garde russa, procedimento este que causou desconforto e posterior conflito em muitos artistas que não compactuavam com a liderança leninista e não queriam abrir mão de sua liberdade criativa. A propaganda exercida pelas organizações estatais colocava toda a arte que não seguisse a direção do partido como algo atrasado, fora do tempo. Em meados dos anos 20 a avant-garde russa era considerada antiquada (BUCK-MORSS, 1998).
Estas mudanças de perspectivas e valores reforçam a visão de que algo que em uma determinada época é visto como procedimento de desorganização, ruptura e fragmentação, em outro momento pode configurar uma nova ordem.
Os avanços tecnológicos em aceleração crescente no final do século XX provocaram mudanças radicais nas relações que o homem estabelece com seu meio, rompendo as distâncias espaciais e temporais e favorecendo os deslocamentos e a transmissão da informação. A teoria de relatividade proposta por Einstein colocou em xeque os pressupostos newtonianos e evidenciou a estreita relação e interdependência entre espaço e tempo. O indivíduo precisou transformar-se, reorganizar sua sensibilidade e percepção de modo a adaptar-se a esta nova configuração do mundo (MELLO, 2008). A internet representa um poderoso avanço no sistema de comunicação. Ela transformou a cultura e sociedade mundial ao transpor barreiras espaço-temporais, ao acelerar e multiplicar deste modo as trocas de informação.
            A necessidade de preservação dos sistemas abertos implícita na premissa de que todo sistema fechado tenderia ao caos explicaria a tendência para hibridização nas formas de expressão do homem contemporâneo. Do ponto de vista científico, o aumento de entropia se caracteriza por um aumento de homogeneidade. As mesclas entre elementos são resultados de hibridizações. Mas, se sob determinado aspecto ocorre uma mistura, gradativamente outra nova estrutura de ordem regida por parâmetros antes inexistentes, e por isso talvez não tão perceptíveis, se torna visível e constitui uma nova forma de pensamento cognitivo, cuja estrutura é a princípio possivelmente mais orgânica porém não aleatória. Pode se considerar então um sistema de “gangorra” no qual a hibridização de um aspecto conteria em si ao mesmo tempo, a organização de outro parâmetro. A qualificação do que seja entrópico ou não neste caso não seria antes de mais nada uma questão subjetiva de interpretação?
As estratégias utilizadas por Dadá exprimiam a revolta dos artistas com o absurdo da guerra e visavam romper radicalmente com os valores do sistema vigente[10]. O Suprematismo refletiu o sentimento de esvaziamento que tomou conta do mundo no pós-guerra, mas opostamente ao Dadá, a procura pela ordem e limpeza indicaria talvez uma esperança na reconstituição de um equilíbrio. Malevich[11] rompeu radicalmente com a tradição formal ocidental ao introduzir o Suprematismo, hoje ainda vivo no campo da arte. Por este motivo seus procedimentos podem ser vistos como entrópicos. No entanto ele estava inaugurando uma nova concepção no campo da arte. Com o Quadrado Negro inaugurou sua pintura não objetiva, preparando o terreno para a crescente desmaterialização do objeto, característica muito presente na arte contemporânea. As rachaduras provenientes do ressecamento da tinta testemunham as mudanças permanentes ocasionadas pela passagem do tempo, assunto este, determinante em sua obra. Seu interesse estava em transmitir dinamismo e energia, a transitoriedade, os deslocamentos e os ritmos através da sensação:

“Para Malevich o suprematismo é a sensação cósmica, o ritmo do estímulo. Toda a realidade física, o mundo objetivo, torna-se movimento, cada partícula transforma-se em força motriz para a sensação”. (SIMMEN e KOHLHOFF, 2001, p. 45).

Se sua temática temporal envolveu conceitos entrópicos, sua obra se caracterizou por um crescente rigor e síntese. Ele introduziu uma linguagem artística voltada para a razão e para a abstração e semeou as condições para o aparecimento da arte minimal (SIMMEN e KOHLHOFF, 2001).
As obras de Carl André, Dan Flavin, Donald Judd são exemplos de uma produção voltada para a ordem, mas para uma ordem de natureza estranha, oca, sem emoção ou significado. No caso, houve um esvaziamento completo de entropia, um estado inerte, uma paralisia condizente apenas com a ausência de vida, um equilíbrio estático de morte. O mundo ainda estava de luto. A land art é um derivado do projeto minimalista. Ambos questionavam o papel das galerias. A land art confrontava a própria Terra utilizando uma linguagem também geométrica com grandes esculturas e desenhos no solo (DEMPSEY, 2003). Robert Smithson, um dos artistas mais proeminentes desta corrente artística, procurava um espaço de pouca organização e nenhuma direção para seu trabalho, espaço que definiu de “entre o lugar e o não lugar” (WOOD et al, 1998). Ele sempre manifestou um interesse especial pelo conceito de entropia, pelos processos de autodestruição e de regeneração da natureza (DEMPSEY, 2003)[12].
Portanto, uma relação que se pode estabelecer entre o artista e a entropia é o uso que ele faz dela de acordo com sua estratégia para lidar com a situação que se apresenta.
            A produção contemporânea, sintonizada com a nova realidade espaço-temporal múltipla se caracteriza pela grande heterogeneidade nas ações artísticas e na constituição de praticas que eliminam a materialidade do objeto em favor da virtualidade e abstração. A obra de arte não corresponde mais a um produto, mas é compreendida como um processo ou acontecimento, como idéia e informação. O uso de tecnologia na criação artística possibilita a construção de novas realidades sensórias espaço-temporais e reforça a idéia de arte como processo.  Estes procedimentos fazem com que o interlocutor se envolva mais ativamente e compartilhe da constituição da obra. Com a era digital as fronteiras entre os diversos meios estão cada vez mais sutis e a hibridização dos mesmos amplia ainda mais os recursos de linguagem na constituição de significados. (MELLO, 2008). As estratégias artísticas hoje objetivam ressaltar o confronto que se estabelece entre arte e vida. A técnica não é suficiente para qualificar uma obra. Utilizando uma linguagem coerente e criando dispositivos através do pensamento o artista constrói um significado.
            A utilização de recursos tecnológicos trouxe para um plano comum o virtual e o palpável, trouxe a problematização de questões contemporâneas tais como o efêmero, o transitório, a multiplicidade, o dinâmico e a desmaterialização do objeto. Este último se perde e junto com ele o “original”. A abstração aumenta. Os museus agora procuram não só cumprir com a função visual de apresentação de uma obra mas foram transformados em locais de espetáculo[13]. Talvez o desaparecimento do objeto e a crescente virtualidade tenham uma parcela de responsabilidade no incremento da necessidade do individuo em sentir-se efetivamente vivo e presente. Isto poderia ser um dos aspectos que justificariam o desenvolvimento de uma sociedade que busca a experimentação e o prazer, uma sociedade do espetáculo conforme Guy Debord a define em sua publicação (DEBORD, 1992).
            Baudelaire no texto “O pintor da vida moderna[14]já observava a importância do tempo presente[15]:
“O prazer que alcançamos com a representação do presente decorre não somente da beleza que pode estar revestindo-o, mas também de sua qualidade essencial de presente.[16](BAUDELAIRE, 1859).


BIBLIOGRAFIA

ARGAN, G.C. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

ARNHEIM, Rudolph. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira Thompson Learning, 2001.

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BAUDELAIRE, Charles. Le peintre de l avie moderne, 1859.
Consulta em 18/03/2009.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BUCK-MORSS, Susan. Walter Benjamin : entre moda acadêmica e Avant-garde.
Consulta em 15/06/2009

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Editora Cultrix, 1982.

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Consulta em 15/06/2009

HAWKING, Stephen, W. Uma breve história do tempo: do big bang aos buracos negros. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Senac, 2008.

NACHMANOVITCH, Stephen. Ser criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Sumus Editorial, 1993.

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SIMMEN, Jeannot; KOHLHOFF, Kolja. Kazimir Malevich. Edição Portuguesa: Künemann, Lisboa, 2001.

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WOOD, Paul; FRASCINA Francis; HARRIS, Jonathan; HARRISON, Charles. Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. Cosac & Naify, 1998.




[1] Como luz e calor
[2] Processos relacionados a noções de temporalidade
[3] Talvez mais complementares do que antagônicas
[4] E portanto temporalidade
[5] Talvez ilusório e temporário já que o tempo não para
[6] Dadá foi o nome dado a um movimento inicialmente literário fundado em 1916 por artistas e intelectuais de diferentes nacionalidades que se exilaram em Zurique, na Suíça por serem contrários ao envolvimento de seus países na Primeira Guerra Mundial. Pretendiam expressar suas desilusões com a ciência, a filosofia e a religião que não tinham conseguido evitar a destruição que ameaçava a Europa. Tristan Tzara, poeta húngaro que fazia parte do grupo, escolheu este nome abrindo e procurando aleatoriamente uma palavra nonsense no dicionário. A palavra dada era apenas um símbolo de revolta e indignação. Com isto queriam dizer que a guerra tinha instaurado o irracionalismo no continente e que portanto a arte tinha perdido o sentido. Protestavam contra a loucura, o nonsense da guerra. Dez milhões de pessoas foram massacradas ou ficaram inválidas. O movimento durou 7 anos.
[7] “Suprematismo (do lat. supremus, supremo) Nome dado por Malevich ao estilo não objetivo desenvolvido a partir de 1915, cuja forma básica é o quadrado. O novo símbolo reproduz sensações espontâneas. As sensações são suscitadas unicamente pelo efeito das formas geométricas puras, ou seja, das formas abstratas. O suprematista “sente” a arte, não a observa.” (SIMMEN e KOHLHOFF, 2001, p. 93).
[8] Enquanto Malevich formulava o Suprematismo, Tatlin iniciava o movimento construtivista com suas primeiras construções, configurando o estilo russo de maior destaque seis anos depois. Ao contrário de Malevich, Tatlin acreditava que a arte tinha um compromisso social e político (DEMPSEY, 2003).
[9] FOSTER no artigo Archives of modern art publicado pela October em 2002
[10]No dadaísmo, o protesto foi levado às extremas conseqüências da negação absoluta da razão. Os dadaístas propuseram, já que não se podia mais confiar na ordem estabelecida e na razão, que a “criação” se libertasse de suas amarras do pensamento lógico e revelasse apenas o automatismo psíquico selecionando e combinando elementos.  Buscavam também acordar a imaginação, a criatividade. A intenção no entanto foi de sátira e crítica e não estética, e tinham como estratégia denunciar e escandalizar. A negação era contra tudo que estivesse relacionado às tradições e aos costumes da sociedade, e a arte sendo um produto desta sociedade a ser renegada em sua totalidade fazia parte destas tradições e costumes. Não criavam obras mas fabricavam objetos. Por isso apesar da muitas semelhanças na revolta e nas atitudes contestatórias dos expressionistas, foram muito mais além. Subvertiam a autoridade e cultivavam o absurdo. Dada era portanto anti-artístico, anti-literário, antipoético. Queria romper com as leis da lógica, a imobilidade do pensamento, o universal em geral. Valorizava a contradição, a anarquia e a imperfeição. Era também antagônico ao modernismo que considerava como uma nova cristalização do espírito, tendo se estabelecido num “status-quo”, sinônimo de imobilidade. Não queriam nenhuma escravidão. Nem mesmo a de Dadá sobre Dadá. Defendiam esta postura de incessante dinamismo da liberdade, de negação contínua de si mesmo, como sendo a única maneira de garantir-se contra a estagnação. Não era mais a obra que interessava e sim o gesto como provocação contra o bom senso, a moral e os costumes. Era o desejo de transformar a poesia em ação, era um modo de vida. O movimento estendeu-se para outros lugares da Europa tais como Paris, Nova York, Berlim, Hanover, Colônia, Londres, San Francisco, Moscou, Budapeste, Tokyo e Barcelona, assumindo um caráter internacional. Dadá foi a expressão da vontade desesperada de afirmação do indivíduo como ser livre, num mundo policiado onde as regras conduziram diretamente à catástrofe.
[11] Ele foi um dos artistas pioneiros a aproximar-se da vida real em sua pintura, contribuindo para o desenvolvimento do retrato psicológico.
[12] Smithson realizou um projeto de recuperação da natureza através da arte com sua obra mais famosa, Quebra-mar em espiral de 1970, condenada no futuro a desaparecer por ação desta mesma natureza.
[13] Uma nova função que o museu pode abarcar seria a de guardar os equipamentos necessários ao acesso das memórias acumuladas em diferentes mídias que com o desenvolvimento tecnológico são rapidamente substituídas e descartadas.
[14] Titulo traduzido da publicação “ Le peintre de la vie moderne” (BAUDELAIRE, ).
[15] Ainda que associando a criação ao ato de representação
[16]“Le plaisir que nous retirons de la repr’esentation du pr’esent tient non-seulement `a la beaute don til peut etre revetu, mais aussi a sa qualite essencielle de present.”

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Boltansky - Les Archives du Coeur & Entre-temps

Les Archives du Coeur - Entre-temps
Vídeo instalação – Vídeo Entre-temps La Maison Rouge 2008
A obra ENTRE-TEMPS do artista francês Christian Boltanski exibida em São Paulo no Paço das Artes, faz parte da programação 2009, ANO DA FRANÇA NO BRASIL. A vídeo-instalação foi inicialmente concebida em 2003 para apresentação na Galerie Yvon Lambert em Paris. O trabalho em processo desde então, vem se desdobrando e adquirindo maior complexidade. Em 2005 o artista apresentou na Maison Rouge, a obra LE COEUR (O coração). Em 2008, também na Maison Rouge, o artista criou uma nova instalação para apresentação do vídeo ENTRE-TEMPS que ele intitulou LES ARCHIVES DU COEUR (Os arquivos do coração). O texto aqui apresentado se propõe a introduzir uma pequena reflexão crítica sobre esta instalação.
Cabe, antes de discorrer sobre o trabalho, situar o artista. Nascido em Paris no ano de 1944, Christian Boltanski é filho de uma tradição literária existencialista e de uma carga histórica dramática, na qual a sombra do Holocausto esteve sempre presente. Sem qualquer formação artística tradicional, ele começou sua produção em 1958, pintando telas em grandes formatos. Em 1969 realizou uma série de filmes experimentais com duração entre 20 segundos e 4 minutos, e produziu seu primeiro livro de artista. Ele se interessa não só pela imagem, mas também pela escrita, pelos objetos e pela hibridização dos meios para construção de instalações e espaços imersivos. Em 1972 participa da 5a Documenta de Kassel, e a partir de então é convidado a expor em museus e galerias estrangeiras e sua obra alcança projeção internacional. Foi convidado a participar da Bienal de Veneza e da 8a Documenta de Kassel. A relação entre identidade, memória, vida e morte compõem o tema de sua produção que até hoje se mantém muito ativa. É casado com a artista Annette Messager com quem vive até hoje em Malakoff, arredores de Paris. Ambos estão entre os artistas contemporâneos franceses mais conceituados da atualidade. Foi professor na “École Nationale Supérieure des Beaux-Arts”.
O vídeo ENTRE-TEMPS é projetado sobre uma cortina translúcida de plástico (aproximadamente 2,3m altura x 3,0m de largura, a 15cm do chão) que se movimenta suavemente com o sopro de um ventilador. O vídeo corresponde a uma seqüência de lentas fusões de fotografias antigas em branco e preto de retratos do artista, desde sua infância até os 60 anos. A resolução das imagens é rudimentar e muitas estão mal focadas. O resultado é uma pseudo-fotografia de identidade aparentemente inerte, que flutua instável pelo balanço do vento, cujas feições se apresentam em sutil e constante transformação.
Para a vídeo-instalação LES ARCHIVES DU COEUR (Os arquivos do coração) em 2008 na Maison Rouge, o artista elaborou um contexto mais complexo com apresentação do mesmo vídeo ENTRE-TEMPS.
Ao atravessar uma cortina preta na entrada e penetrar em uma sala ampla na penumbra, a pergunta inscrita na parede “Qui êtes vous?” (Quem é/são você/vocês?) estabelece um diálogo direto com o público. A subjetividade do visitante é abruptamente invocada, a esfera cognitiva acionada e a percepção aguçada. Há uma mudança radical na configuração do espaço, cuja fronteira é claramente marcada pela cortina. A situação habitual de ambiente coletivo é substituída por uma atmosfera insólita e intimista, na qual os aspectos sensórios visuais e sonoros são ricamente explorados. A presença de símbolos na obra do artista é uma constante. Ao expressar-se em texto, ele inicia o contato com o visitante recorrendo à abstração. Com a pergunta direta e analogamente complexa e rica de significados, Boltanski sacode a estrutura do visitante desarmando-o para propor uma intensa experiência sensória.
O visitante percebe ao penetrar no recinto, o som amplificado de um batimento cardíaco. Uma lâmpada incandescente e fraca, pisca no ritmo das pulsações. Ela provoca sombras nas paredes da sala que constituem imagens sonoras do coração do artista se propagando por todo o ambiente, carregadas de arquétipos armazenados no inconsciente universal da humanidade. As angustias e os medos presentes desde os primórdios da história da humanidade que a consciência da fragilidade e da efemeridade provoca, emergem com intensidade.
Nas paredes da sala, como se fossem fotografias ausentes, uma série de quadros de formatos variados que o artista chama de espelhos negros estão presos e revelam apenas a profundidade da sua superfície escura, as sombras e o reflexo da lâmpada sobre o vidro. Aqui não se trata da imagem, mas a ausência da mesma é que constrói um significado.
Um pouco mais adiante, encontra-se a projeção do vídeo ENTRE- TEMPS. O retrato do artista em sutil e constante transformação está contaminado com a vibração provocada pela sombra e luminosidade incerta e fraca da lâmpada sobre a superfície flutuante da cortina. A atmosfera da sala é de instabilidade e sonho. Boltanski cria com o conjunto uma situação insólita, onde o tempo em suspenso traz a memória para uma vivencia de presença no passado. Não há possibilidade de pausa ou captura.
Na saída, o visitante é convidado a gravar dentro de uma cabine o batimento cardíaco de seu coração, e a levar consigo uma cópia da gravação. O artista pretende continuar com estas gravações nos próximos anos de modo a ampliar ao máximo este corpo de batimentos cardíacos que ele deseja preservar contra a passagem do tempo.
O título entre-temps (entre-tempos) reforça o caráter ambíguo e imponderável do lugar que Boltanski propõe ao visitante para experimentação. Um lugar intermediário onde o tempo cronológico desaparece para dar espaço a um intervalo, um parêntese, um interstício, um tempo suspenso, paralelo de espera. O conjunto oscila dentro de uma zona híbrida e fronteiriça entre a realidade e a ficção, entre a memória e o esquecimento. O auto-retrato em transformação do artista mescla-se aos espelhos negros para constituir simbolicamente uma fusão da esfera particular e coletiva do indivíduo.
Existe um movimento, um sopro que emana deste lugar, sente-se a presença de algo frágil e ao mesmo tempo persistente. A luminosidade é tênue e instável. O clima é de mistério e estranheza. Todos estes elementos intensificam a apreensão do caráter nostálgico, efêmero e transitório da existência.
Boltanski procura explorar a sobreposição de sentidos através da união de dispositivos que estimulam a subjetividade e cognição aos aspectos sensórios da expansão do áudio e da imagem no ambiente. A sincronia obtida não só entre os aspectos visuais e sonoros, mas também com a resultante audiovisual associada aos aspectos simbólicos da instalação, amplia a força do trabalho. Não se trata de uma representação, mas da construção de uma composição onde a lógica e a sensibilidade são ativadas simultaneamente, potencializando a apreensão dos significados. LES ARCHIVES DU COEUR exalam uma densidade de significados que talvez só possa ser apreendida qualitativamente (BERGSON).
Até que ponto, ao envolver a participação do visitante no processo de criação artística, Boltanski não procura apenas ampliar o grau de ressonância deste público na sua relação com a obra, mas também fundir-se ele mesmo com o coletivo da condição humana? Não haveria aqui a manifestação de um desejo de pertencer e compartilhar, tão premente como a necessidade que o ser humano tem de se reconhecer como parte de alguma coisa e como identidade única?
A poética de Boltanski envolve erudição, sensibilidade e afeto. O artista aborda questões como a dor, a tristeza e a perda de modo extremamente delicado e profundo. O público envolvido com o calor que se desprende do trabalho, o acolhe e se dispõe a refletir sobre a realidade inquietante e assustadora que representam a fragilidade, a efemeridade da condição humana, a morte e o vazio.
Se recursos de tecnologia são utilizados para produção das imagens e do áudio, estes são rudimentares se comparados com as tecnologias avançadas empregadas atualmente por muitos artistas. Boltanski, com muita simplicidade e poucos recursos, subverte a máquina ao fazer uso dela para potencializar a expressão do maior diferencial que ele possui em relação a ela: a afetividade e o sentimento.
BIBLIOGRAFIA BOLTANSKI, Christian. Christian Boltanski. London, Phaidon Press Limited,
2001.
BOLTANSKI, Christian. Les modèles: cinq relations entre texte & image. Paris: cheval dáttaque, 1979.
BOLTANSKI, Christian; GRENIER, Catherine. La vie possible de Christian Boltanski. Paris: Éditions du Seuil, 2007.
NUIT BLANCHE PARIS 4 OCTOBRE 2008. Programme. Paris: Mairie de Paris, 2008.
OBRIST, Hans Ulrich. Boltanski, Christian and Luc. Intervieus. Vol 1. Milan: Editzioni Charta, 2003.
Internet (acesso em 02/07/2010)
http://www.tate.org.uk/modern/exhibitions/cinema/boltanski.htm
http://www.lecinematographe.com/programme- sept08/films/courts_mrejen_boltanski.html
http://www.webzinemaker.com/admi/m9/page.php3?num_web=36408&rubr=3&i d=261032
http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-boltanski/ENS- boltanski.htm
http://www.arte.tv/fr/navigation/1182390.html

PENSANDO O ESPAÇO DO HOMEM


“PENSANDO O ESPAÇO DO HOMEM”

Milton Santos

 

 Resenha bibliográfica

Milton Santos em sua publicação “Pensando o Espaço do Homem[1], faz um estudo sobre as relações entre o ser humano e seu espaço, aponta os problemas que a sociedade contemporânea enfrenta em resposta ao sistema capitalista mundial e seus reflexos na geografia do planeta. Ele discute o papel do Estado e alguns efeitos provocados pelos avanços tecnológicos a serviço desta política globalizada, propõe uma reconstrução sintonizada do espaço e da sociedade, com conseqüente alteração dos objetos geográficos produzidos e cita Cuba como exemplo para uma política do Estado.
            Ele aponta apenas o presente, o aqui e agora, como sendo a realidade que abarca a dimensão espacial e temporal. O espaço de natureza diferente reúne o presente e o passado ao conter simultaneamente a vivencia atual juntamente com “objetos geográficos cristalizados[2]“ de “momentos que foram[3]“. Ao observar que “o momento passado está morto como tempo, não porém como espaço[4]” e que a apreensão do presente requer um desprendimento gradativo de dogmas envelhecidos de modo a permitir a atualização de conceitos e valores ele não nega a função do passado apontando-o como referencia útil e necessária para relacionarmos fatos e contextos, para identificarmos causas e efeitos e nos localizarmos na dinâmica do processo histórico.  
Segundo ele, vivemos atualmente uma nova fase na historia da humanidade resultante de transformações drástica trazidas pela sofisticação e aceleração do modelo capitalista, oriundo da Revolução Industrial. Se a técnica foi utilizada para intermediar a natureza e o homem desde os primórdios da civilização, hoje ela se tornou imprescindível para construção de objetos sofisticados que subvertem as relações entre ambos. Os pilares do período em que vivemos denominado pelo autor de tecnológico correspondem à ciência, à tecnologia e aos meios de comunicação de massa. O grande veículo são as empresas multinacionais, verdadeiros “instrumentos de concentração e acumulação de capital[5]. A “mundialização da produção e do consumo[6] para diminuição dos custos de mão de obra assim como a conquista de mercado com aumento de demanda e conseqüente elevação dos lucros são fatores que provocam uma “universalização perversa[7] com “generalização do monopólio em escala mundial[8], transformando os espaços em função do papel que desempenham neste macro sistema. As diferenças sociais se agravam conforme as particularidades de cada Estado, arrastado por esta engrenagem e preocupado em garantir sua economia no contexto mundial.
A rápida evolução tecnológica torna-se um agente multiplicador de exploração com impacto significativo sobre o processo de acumulação, não mais ditado pela produção, mas pela crescente demanda de consumo. Este, cada vez mais intermediado pelos serviços, destaca o papel das atividades terciárias na sociedade, anteriormente pouco expressivo. A complexidade e rapidez crescente na dinâmica do sistema aumentam a necessidade de liquidez e acumulação o que acarreta uma concentração dos meios de produção junto aos instrumentos de trabalho e acelera as aglomerações e distorções econômicas e demográficas.
Como conseqüência, a economia e seus “mecanismos de dominação[9] tornam-se mundializados. As “influencias externas cada vez mais deformantes e uma estrutura interna cada vez mais deformada[10] repercutem significativamente e de forma extremamente negativa nos países subdesenvolvidos:

“Para os países subdesenvolvidos, o resultado é claro: produção sem relação com as necessidades reais; exportações e importações nocivas à economia mundial; superutilização dos recursos sociais em homens e em matérias-primas, em beneficio de grandes firmas mundiais; subutilização da forca de trabalho e dos recursos efetivamente indispensáveis à sobrevivência. No plano do Estado, endividamento crescente, distorção na destinação dos recursos, proteção, tornada indispensável, às atividades que sustentam o “crescimento” e o comercio exterior, com conseqüente empobrecimento do Estado. No plano social, agravamento do não-emprego, da pobreza, das condições de habitat, educação, saúde e alimentação. Empobrecimento relativo e absoluto.” (SANTOS, 2007, p.20).

O espaço, “soma dos resultados da intervenção humana sobre a terra[11], se tornou mundial e responde a pressões internacionais. Sua organização condiz com a ideologia dominante e estrutura de acumulação. Para isto, sacrifica-se a emotividade e o lado humano em favor de modelos padronizados, precários ou feios, mais rapidamente alcançados e consequentemente mais adequados às pressões para acumulação. “Os locais de trabalho, de estudo, de lazer, o quadro da nossa vida quotidiana são concebidos como mercadorias[12]e se encaixam nestes modelos. A propaganda e o marketing se desenvolvem e a informação é deturpada visando atrair o consumidor. Dentro deste cenário complexo, a presença da “Nação-Estado[13] se impõe como necessidade para estabelecer mecanismos de regulamentação. Esta, antes atenta tanto às questões de interesse nacional como internacional, com o advento de uma sociedade globalizada, não tem autonomia suficiente para lidar com os problemas internos (SANTOS, 2007).
As metrópoles têm uma necessidade crescente de serviços para satisfazer a demanda de produção. Elas esmagam as regiões circundantes que ficam com sua capacidade de produção reduzida devido à absorção, deslocamento e desligamento da sua mão de obra, respondendo a um comando econômico exógeno. A especialização do individuo em função de interesses distantes torna-o estanho ao seu trabalho e ao seu habitat. Esta dissociação se amplia na cadeia de sistemas decorrentes:

“...a cidade torna-se estranha à região, a própria região fica alienada, já que não produz mais para servir às necessidades reais daqueles que a habitam... o homem produtor sabe cada vez menos quem é o criador de novos espaços quem é o pensador, o planificador, o beneficiário.” (SANTOS, 2007, p.29).

O homem transformado em mercadoria “deve sujeitar-se às coisas que ele próprio construiu[14]. O espaço também transformado em “capital comum a toda a humanidade[15]com valor equivale a um potencial abstrato que lhe é conferido, torna-se elemento de especulação. O fato de ser acessível apenas àqueles que detêm o capital, reforça a noção de propriedade privada de um bem coletivo e aprofunda as distancias entre os homens. Disputado pelas superpotências o espaço necessita de demarcações abstratas ou fronteiras para proteção dos interesses particulares da “Nação-Estado” a que pertence: “Se existem espaços vazios, já não existem espaços neutros[16].

“... com o desenvolvimento das forças produtivas e a extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para aprofundar as diferenças de classes. Essa mesma evolução acarreta um movimento aparentemente paradoxal: o espaço que une e separa os homens” (SANTOS, 2007, p.32).

Estabelece-se assim um conflito entre o mundo artificialmente dividido e a sociedade indivisível na sua totalidade.
Para o autor só é possível interpretar o espaço e sua evolução levando-se em conta a análise conjunta de três aspectos: a forma, a estrutura e a função.  Nenhuma destas categorias faz sentido isoladamente. Ele diferencia a abordagem da geografia entre “espacialistas[17] e “espaciólogos[18].  Os primeiros ignoram a questão social enquanto que os segundos procuram compreender os espaços na sua relação com as dinâmicas sociais. Antigamente suas configurações respondiam diretamente à estrutura social com mudanças lentas e endógenas. Hoje, o sistema se tornou tão complexo e mediado que “as coisas já nascem prenhes de simbolismo[19]com significados deformados e a evolução das formas do espaço tornou-se uma função do marketing e não de uma realidade.

“Um método falso usado para analisar uma realidade igualmente falsa, resulta uma mistificação.” (SANTOS, 2007, p.59).
           
            Milton Santos observa que tanto a noção de tempo como a de escala são fundamentais para se interpretar um espaço. Este é total, mas sua leitura na forma de paisagem não o é. De natureza contínua, ele se apresenta funcionalmente fragmentado, impedindo a leitura e compreensão dos fatores que atuam na sua dinâmica. O autor observa com pertinência que negligenciamos o todo tornando limitada e superficial a percepção e reunião de objetos no espaço na busca pela apreensão da paisagem. Constituímos uma interpretação fragmenta deste espaço, “amoldada pela ideologia[20]que obedece às demandas capitalistas assim como à estandardização industrial.
A paisagem, produzida pela sociedade através de mediação, corresponde a uma “funcionalização da estrutura técnico-produtiva e lugar de fetichização[21]”. Situada em um determinado momento da história, sofre constantes transformações parciais acompanhando as mudanças da sociedade. Os elementos nela que se mantêm, testemunham o passado constituindo uma “acumulação de tempos[22]”. Os diversos tipos tais como centros urbanos, metrópoles, periferias e paisagens rurais são formas “mais ou menos duráveis[23]de combinações de “objetos naturais[24] e de “objetos fabricados[25] ou “sociais[26] que funcionam como registros da ação do ser humano tanto no passado como no presente.
O autor propõe como passo inicial na busca de solucionar o conflito entre o homem e o espaço, “desfetichizar[27] a ambos: “nós não mudaremos o mundo, mas podemos mudar o modo de vê-lo[28]. Ele aponta a necessidade de desmistificar a “formação social que anima o espaço[29]e a paisagem. Só então, com o estudo dos modos de produção e seus reflexos na sociedade ao longo da historia, será possível alcançar uma compreensão do valor real do trabalho do homem, construir uma moral mais generosa, resgatar o valor do indivíduo e assim “estabelecer os alicerces de um espaço verdadeiramente humano[30].
O autor cita Ragnar Nurke e contesta sua afirmação de que um mercado precisa de um aumento generalizado de produtividade para crescer, julgando imediatista esta estratégia de consumo isolada da política de produção, e afirma apoiado em Johannes Messner que a produtividade deve ser seletiva e solidária, “estreitamente ligada ao consumo da sociedade como um todo[31]. Do contrário há aumento de pobreza, dependência externa para abastecimentos de bens de consumo essenciais, e “desperdício de recursos materiais e humanos[32].
Por conta desta situação, ele aponta a aproximação de uma crise fatal que possivelmente derrubará o atual sistema capitalista, que ele associa a um novo modelo de mercantilismo. Ele acredita na hipótese de estarmos deixando o “período tecnológico[33] iniciado com a Revolução Industrial em direção a um novo momento histórico. Apesar de aceitar a possibilidade de em muitos casos o próprio Estado reconhecer a necessidade de mudanças no sistema e decidir agir, considera mais provável que o movimento seja desencadeado pelas massas sacrificadas e oprimidas. Possivelmente haveria um período de transição e conflito entre as antigas classes dominantes e a massa, agravado pelo descompasso entre as mudanças políticas e sociais em relação às transformações mais lentas do espaço. Estes desajustes exigiriam do Estado uma interferência efetiva na divisão democrática do trabalho, uma atuação ativa reguladora e de planejamento contínuo e indissociável na política do espaço e da produção de modo a permanecer próximo da Nação, protegê-la e evitar situações como as que ocorreram em Angola, Moçambique, Etiópia e Camboja.
Seriam necessárias inúmeras modificações no processo produtivo, nas relações do homem com a natureza e com seu semelhante para se reconstruir o espaço, para se obter uma sociedade igualitária mais humana, de modo que “todos os cidadãos participem da tarefa da produção coletiva, mas também de seus resultados[34]. Seria necessário agir em um plano total sócio-econômico e político do “Estado-Nação[35], e não apenas em um plano local. A natureza do Estado transformada, uma economia não mais baseada nos fluxos mas nos estoques, a estrutura global da produção subordinada ao consumo e adaptada aos recursos nacionais e à população, a reorganização das funções do espaço das relações que o Estado estabelece com o sistema internacional, e das relações do próprio sistema internacional, são medidas que teriam de ser aplicadas, priorizando os aspectos sociais em relação aos econômicos.
O Estado socialmente mais rico, teria então mais autonomia para estabelecer um modelo próprio e condizente com seu contexto cultural e geográfico. Haveria uma distribuição mais homogênea de produção e de população, os bens seriam menos rapidamente destruídos, um aumento na oferta de empregos contribuiria para a diminuição da pobreza, “o novo papel de cidadão restauraria o homem em sua dignidade e eficiência política[36]. A tecnologia sintonizada com esta nova dinâmica trabalharia a favor, agilizando este processo de transformação favorável do espaço e da sociedade.
Estas mudanças seriam incorporadas no espaço alterando gradualmente sua forma. Os objetos geográficos anteriores teriam novas finalidades. Em decorrência, muitos seriam transformados ou substituídos. Os que permanecessem poderiam adquirir novas finalidades, ou se manteriam inativos. O autor questiona se a presença de objetos residuais de caráter nocivo indicaria estarem “em disponibilidade[37], “em espera[38], constituindo uma ameaça ao programa de reconstrução, ou se sua presença física apenas guardaria uma significação paisagística.
Em sua obra Milton Santos aborda questões cruciais, aponta graves disparidades sociais altamente desestabilizadoras de um mundo globalizado, antagônicas à condição humana e por conseguinte difíceis de serem toleradas. Em linguagem clara e objetiva elabora uma análise consistente dos problemas ocasionados pela economia deformante capitalista. O autor discute a complexidade da dinâmica dos mecanismos de produção sobre o homem e sobre o espaço, na qual um sistema de consumo é estimulado e priorizado, e aponta as conseqüências negativas deste processo. Identificando uma crise social mundial já em 1977, situação que se agravou de uma forma dramática até os dias de hoje, ele propõe uma transformação nos valores para reconstrução de um espaço e de uma sociedade mais digna e igualitária. Se o modelo paternalista e autoritário de Cuba no qual a liberdade do indivíduo é cerceada hoje também não se confirmou satisfatório no combate à pobreza, o texto aborda com lucidez questões essenciais e incita o leitor a uma reflexão e questionamento sobre a necessidade de se buscar novos caminhos para construção de uma sociedade mais justa e generosa na qual a dignidade humana possa ser resgatada.
Monique Allain
2009

[1] SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2007.
[2] SANTOS, 2007, p. 14.
[3] SANTOS, 2007, p. 14.
[4] SANTOS, 2007, p. 14.
[5] SANTOS, 2007, p. 16.
[6] SANTOS, 2007, p.16.
[7] SANTOS, 2007, p.16.
[8] SANTOS, 2007, p.16.
[9] SANTOS, 2007, p. 21.
[10] SANTOS, 2007, p. 20.
[11] SANTOS, 2007, p. 29.
[12] SANTOS, 2007, p. 38.
[13] SANTOS, 2007, p. 25.
[14] SANTOS, 2007, p. 31.
[15] SANTOS, 2007, p. 31.
[16] SANTOS, 2007, p. 26.
[17] SANTOS, 2007, p. 58.
[18] SANTOS, 2007, p. 58.
[19] SANTOS, 2007, p. 59.
[20] SANTOS, 2007, p. 35.
[21] SANTOS, 2007, p. 39.
[22] SANTOS, 2007, p. 54.
[23] SANTOS, 2007, p. 53.
[24] SANTOS, 2007, p. 53.
[25] SANTOS, 2007, p. 53.
[26] SANTOS, 2007, p. 53.
[27] SANTOS, 2007, p. 39.
[28] SANTOS, 2007, p. 40.
[29] SANTOS, 2007, p. 39.
[30] SANTOS, 2007, p. 41.
[31] SANTOS, 2007, p. 69.
[32] SANTOS, 2007, p. 68.
[33] SANTOS, 2007, p. 65.
[34] SANTOS, 2007, p. 73.
[35] SANTOS, 2007, p. 84.
[36] SANOTS, 2007, p. 80.
[37] SANTOS, 2007, p. 83.
[38] SANTOS, 2007, p. 83.