quarta-feira, 25 de julho de 2012

PENSANDO O ESPAÇO DO HOMEM


“PENSANDO O ESPAÇO DO HOMEM”

Milton Santos

 

 Resenha bibliográfica

Milton Santos em sua publicação “Pensando o Espaço do Homem[1], faz um estudo sobre as relações entre o ser humano e seu espaço, aponta os problemas que a sociedade contemporânea enfrenta em resposta ao sistema capitalista mundial e seus reflexos na geografia do planeta. Ele discute o papel do Estado e alguns efeitos provocados pelos avanços tecnológicos a serviço desta política globalizada, propõe uma reconstrução sintonizada do espaço e da sociedade, com conseqüente alteração dos objetos geográficos produzidos e cita Cuba como exemplo para uma política do Estado.
            Ele aponta apenas o presente, o aqui e agora, como sendo a realidade que abarca a dimensão espacial e temporal. O espaço de natureza diferente reúne o presente e o passado ao conter simultaneamente a vivencia atual juntamente com “objetos geográficos cristalizados[2]“ de “momentos que foram[3]“. Ao observar que “o momento passado está morto como tempo, não porém como espaço[4]” e que a apreensão do presente requer um desprendimento gradativo de dogmas envelhecidos de modo a permitir a atualização de conceitos e valores ele não nega a função do passado apontando-o como referencia útil e necessária para relacionarmos fatos e contextos, para identificarmos causas e efeitos e nos localizarmos na dinâmica do processo histórico.  
Segundo ele, vivemos atualmente uma nova fase na historia da humanidade resultante de transformações drástica trazidas pela sofisticação e aceleração do modelo capitalista, oriundo da Revolução Industrial. Se a técnica foi utilizada para intermediar a natureza e o homem desde os primórdios da civilização, hoje ela se tornou imprescindível para construção de objetos sofisticados que subvertem as relações entre ambos. Os pilares do período em que vivemos denominado pelo autor de tecnológico correspondem à ciência, à tecnologia e aos meios de comunicação de massa. O grande veículo são as empresas multinacionais, verdadeiros “instrumentos de concentração e acumulação de capital[5]. A “mundialização da produção e do consumo[6] para diminuição dos custos de mão de obra assim como a conquista de mercado com aumento de demanda e conseqüente elevação dos lucros são fatores que provocam uma “universalização perversa[7] com “generalização do monopólio em escala mundial[8], transformando os espaços em função do papel que desempenham neste macro sistema. As diferenças sociais se agravam conforme as particularidades de cada Estado, arrastado por esta engrenagem e preocupado em garantir sua economia no contexto mundial.
A rápida evolução tecnológica torna-se um agente multiplicador de exploração com impacto significativo sobre o processo de acumulação, não mais ditado pela produção, mas pela crescente demanda de consumo. Este, cada vez mais intermediado pelos serviços, destaca o papel das atividades terciárias na sociedade, anteriormente pouco expressivo. A complexidade e rapidez crescente na dinâmica do sistema aumentam a necessidade de liquidez e acumulação o que acarreta uma concentração dos meios de produção junto aos instrumentos de trabalho e acelera as aglomerações e distorções econômicas e demográficas.
Como conseqüência, a economia e seus “mecanismos de dominação[9] tornam-se mundializados. As “influencias externas cada vez mais deformantes e uma estrutura interna cada vez mais deformada[10] repercutem significativamente e de forma extremamente negativa nos países subdesenvolvidos:

“Para os países subdesenvolvidos, o resultado é claro: produção sem relação com as necessidades reais; exportações e importações nocivas à economia mundial; superutilização dos recursos sociais em homens e em matérias-primas, em beneficio de grandes firmas mundiais; subutilização da forca de trabalho e dos recursos efetivamente indispensáveis à sobrevivência. No plano do Estado, endividamento crescente, distorção na destinação dos recursos, proteção, tornada indispensável, às atividades que sustentam o “crescimento” e o comercio exterior, com conseqüente empobrecimento do Estado. No plano social, agravamento do não-emprego, da pobreza, das condições de habitat, educação, saúde e alimentação. Empobrecimento relativo e absoluto.” (SANTOS, 2007, p.20).

O espaço, “soma dos resultados da intervenção humana sobre a terra[11], se tornou mundial e responde a pressões internacionais. Sua organização condiz com a ideologia dominante e estrutura de acumulação. Para isto, sacrifica-se a emotividade e o lado humano em favor de modelos padronizados, precários ou feios, mais rapidamente alcançados e consequentemente mais adequados às pressões para acumulação. “Os locais de trabalho, de estudo, de lazer, o quadro da nossa vida quotidiana são concebidos como mercadorias[12]e se encaixam nestes modelos. A propaganda e o marketing se desenvolvem e a informação é deturpada visando atrair o consumidor. Dentro deste cenário complexo, a presença da “Nação-Estado[13] se impõe como necessidade para estabelecer mecanismos de regulamentação. Esta, antes atenta tanto às questões de interesse nacional como internacional, com o advento de uma sociedade globalizada, não tem autonomia suficiente para lidar com os problemas internos (SANTOS, 2007).
As metrópoles têm uma necessidade crescente de serviços para satisfazer a demanda de produção. Elas esmagam as regiões circundantes que ficam com sua capacidade de produção reduzida devido à absorção, deslocamento e desligamento da sua mão de obra, respondendo a um comando econômico exógeno. A especialização do individuo em função de interesses distantes torna-o estanho ao seu trabalho e ao seu habitat. Esta dissociação se amplia na cadeia de sistemas decorrentes:

“...a cidade torna-se estranha à região, a própria região fica alienada, já que não produz mais para servir às necessidades reais daqueles que a habitam... o homem produtor sabe cada vez menos quem é o criador de novos espaços quem é o pensador, o planificador, o beneficiário.” (SANTOS, 2007, p.29).

O homem transformado em mercadoria “deve sujeitar-se às coisas que ele próprio construiu[14]. O espaço também transformado em “capital comum a toda a humanidade[15]com valor equivale a um potencial abstrato que lhe é conferido, torna-se elemento de especulação. O fato de ser acessível apenas àqueles que detêm o capital, reforça a noção de propriedade privada de um bem coletivo e aprofunda as distancias entre os homens. Disputado pelas superpotências o espaço necessita de demarcações abstratas ou fronteiras para proteção dos interesses particulares da “Nação-Estado” a que pertence: “Se existem espaços vazios, já não existem espaços neutros[16].

“... com o desenvolvimento das forças produtivas e a extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para aprofundar as diferenças de classes. Essa mesma evolução acarreta um movimento aparentemente paradoxal: o espaço que une e separa os homens” (SANTOS, 2007, p.32).

Estabelece-se assim um conflito entre o mundo artificialmente dividido e a sociedade indivisível na sua totalidade.
Para o autor só é possível interpretar o espaço e sua evolução levando-se em conta a análise conjunta de três aspectos: a forma, a estrutura e a função.  Nenhuma destas categorias faz sentido isoladamente. Ele diferencia a abordagem da geografia entre “espacialistas[17] e “espaciólogos[18].  Os primeiros ignoram a questão social enquanto que os segundos procuram compreender os espaços na sua relação com as dinâmicas sociais. Antigamente suas configurações respondiam diretamente à estrutura social com mudanças lentas e endógenas. Hoje, o sistema se tornou tão complexo e mediado que “as coisas já nascem prenhes de simbolismo[19]com significados deformados e a evolução das formas do espaço tornou-se uma função do marketing e não de uma realidade.

“Um método falso usado para analisar uma realidade igualmente falsa, resulta uma mistificação.” (SANTOS, 2007, p.59).
           
            Milton Santos observa que tanto a noção de tempo como a de escala são fundamentais para se interpretar um espaço. Este é total, mas sua leitura na forma de paisagem não o é. De natureza contínua, ele se apresenta funcionalmente fragmentado, impedindo a leitura e compreensão dos fatores que atuam na sua dinâmica. O autor observa com pertinência que negligenciamos o todo tornando limitada e superficial a percepção e reunião de objetos no espaço na busca pela apreensão da paisagem. Constituímos uma interpretação fragmenta deste espaço, “amoldada pela ideologia[20]que obedece às demandas capitalistas assim como à estandardização industrial.
A paisagem, produzida pela sociedade através de mediação, corresponde a uma “funcionalização da estrutura técnico-produtiva e lugar de fetichização[21]”. Situada em um determinado momento da história, sofre constantes transformações parciais acompanhando as mudanças da sociedade. Os elementos nela que se mantêm, testemunham o passado constituindo uma “acumulação de tempos[22]”. Os diversos tipos tais como centros urbanos, metrópoles, periferias e paisagens rurais são formas “mais ou menos duráveis[23]de combinações de “objetos naturais[24] e de “objetos fabricados[25] ou “sociais[26] que funcionam como registros da ação do ser humano tanto no passado como no presente.
O autor propõe como passo inicial na busca de solucionar o conflito entre o homem e o espaço, “desfetichizar[27] a ambos: “nós não mudaremos o mundo, mas podemos mudar o modo de vê-lo[28]. Ele aponta a necessidade de desmistificar a “formação social que anima o espaço[29]e a paisagem. Só então, com o estudo dos modos de produção e seus reflexos na sociedade ao longo da historia, será possível alcançar uma compreensão do valor real do trabalho do homem, construir uma moral mais generosa, resgatar o valor do indivíduo e assim “estabelecer os alicerces de um espaço verdadeiramente humano[30].
O autor cita Ragnar Nurke e contesta sua afirmação de que um mercado precisa de um aumento generalizado de produtividade para crescer, julgando imediatista esta estratégia de consumo isolada da política de produção, e afirma apoiado em Johannes Messner que a produtividade deve ser seletiva e solidária, “estreitamente ligada ao consumo da sociedade como um todo[31]. Do contrário há aumento de pobreza, dependência externa para abastecimentos de bens de consumo essenciais, e “desperdício de recursos materiais e humanos[32].
Por conta desta situação, ele aponta a aproximação de uma crise fatal que possivelmente derrubará o atual sistema capitalista, que ele associa a um novo modelo de mercantilismo. Ele acredita na hipótese de estarmos deixando o “período tecnológico[33] iniciado com a Revolução Industrial em direção a um novo momento histórico. Apesar de aceitar a possibilidade de em muitos casos o próprio Estado reconhecer a necessidade de mudanças no sistema e decidir agir, considera mais provável que o movimento seja desencadeado pelas massas sacrificadas e oprimidas. Possivelmente haveria um período de transição e conflito entre as antigas classes dominantes e a massa, agravado pelo descompasso entre as mudanças políticas e sociais em relação às transformações mais lentas do espaço. Estes desajustes exigiriam do Estado uma interferência efetiva na divisão democrática do trabalho, uma atuação ativa reguladora e de planejamento contínuo e indissociável na política do espaço e da produção de modo a permanecer próximo da Nação, protegê-la e evitar situações como as que ocorreram em Angola, Moçambique, Etiópia e Camboja.
Seriam necessárias inúmeras modificações no processo produtivo, nas relações do homem com a natureza e com seu semelhante para se reconstruir o espaço, para se obter uma sociedade igualitária mais humana, de modo que “todos os cidadãos participem da tarefa da produção coletiva, mas também de seus resultados[34]. Seria necessário agir em um plano total sócio-econômico e político do “Estado-Nação[35], e não apenas em um plano local. A natureza do Estado transformada, uma economia não mais baseada nos fluxos mas nos estoques, a estrutura global da produção subordinada ao consumo e adaptada aos recursos nacionais e à população, a reorganização das funções do espaço das relações que o Estado estabelece com o sistema internacional, e das relações do próprio sistema internacional, são medidas que teriam de ser aplicadas, priorizando os aspectos sociais em relação aos econômicos.
O Estado socialmente mais rico, teria então mais autonomia para estabelecer um modelo próprio e condizente com seu contexto cultural e geográfico. Haveria uma distribuição mais homogênea de produção e de população, os bens seriam menos rapidamente destruídos, um aumento na oferta de empregos contribuiria para a diminuição da pobreza, “o novo papel de cidadão restauraria o homem em sua dignidade e eficiência política[36]. A tecnologia sintonizada com esta nova dinâmica trabalharia a favor, agilizando este processo de transformação favorável do espaço e da sociedade.
Estas mudanças seriam incorporadas no espaço alterando gradualmente sua forma. Os objetos geográficos anteriores teriam novas finalidades. Em decorrência, muitos seriam transformados ou substituídos. Os que permanecessem poderiam adquirir novas finalidades, ou se manteriam inativos. O autor questiona se a presença de objetos residuais de caráter nocivo indicaria estarem “em disponibilidade[37], “em espera[38], constituindo uma ameaça ao programa de reconstrução, ou se sua presença física apenas guardaria uma significação paisagística.
Em sua obra Milton Santos aborda questões cruciais, aponta graves disparidades sociais altamente desestabilizadoras de um mundo globalizado, antagônicas à condição humana e por conseguinte difíceis de serem toleradas. Em linguagem clara e objetiva elabora uma análise consistente dos problemas ocasionados pela economia deformante capitalista. O autor discute a complexidade da dinâmica dos mecanismos de produção sobre o homem e sobre o espaço, na qual um sistema de consumo é estimulado e priorizado, e aponta as conseqüências negativas deste processo. Identificando uma crise social mundial já em 1977, situação que se agravou de uma forma dramática até os dias de hoje, ele propõe uma transformação nos valores para reconstrução de um espaço e de uma sociedade mais digna e igualitária. Se o modelo paternalista e autoritário de Cuba no qual a liberdade do indivíduo é cerceada hoje também não se confirmou satisfatório no combate à pobreza, o texto aborda com lucidez questões essenciais e incita o leitor a uma reflexão e questionamento sobre a necessidade de se buscar novos caminhos para construção de uma sociedade mais justa e generosa na qual a dignidade humana possa ser resgatada.
Monique Allain
2009

[1] SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2007.
[2] SANTOS, 2007, p. 14.
[3] SANTOS, 2007, p. 14.
[4] SANTOS, 2007, p. 14.
[5] SANTOS, 2007, p. 16.
[6] SANTOS, 2007, p.16.
[7] SANTOS, 2007, p.16.
[8] SANTOS, 2007, p.16.
[9] SANTOS, 2007, p. 21.
[10] SANTOS, 2007, p. 20.
[11] SANTOS, 2007, p. 29.
[12] SANTOS, 2007, p. 38.
[13] SANTOS, 2007, p. 25.
[14] SANTOS, 2007, p. 31.
[15] SANTOS, 2007, p. 31.
[16] SANTOS, 2007, p. 26.
[17] SANTOS, 2007, p. 58.
[18] SANTOS, 2007, p. 58.
[19] SANTOS, 2007, p. 59.
[20] SANTOS, 2007, p. 35.
[21] SANTOS, 2007, p. 39.
[22] SANTOS, 2007, p. 54.
[23] SANTOS, 2007, p. 53.
[24] SANTOS, 2007, p. 53.
[25] SANTOS, 2007, p. 53.
[26] SANTOS, 2007, p. 53.
[27] SANTOS, 2007, p. 39.
[28] SANTOS, 2007, p. 40.
[29] SANTOS, 2007, p. 39.
[30] SANTOS, 2007, p. 41.
[31] SANTOS, 2007, p. 69.
[32] SANTOS, 2007, p. 68.
[33] SANTOS, 2007, p. 65.
[34] SANTOS, 2007, p. 73.
[35] SANTOS, 2007, p. 84.
[36] SANOTS, 2007, p. 80.
[37] SANTOS, 2007, p. 83.
[38] SANTOS, 2007, p. 83.

4 comentários:

  1. Texto esclarecedor de grande valia, que me vez poupar tempo e agregou conhecimento de que precisava sobre o livro

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  2. Muitíssimo obrigada! Ajudou bastante...

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