segunda-feira, 23 de julho de 2012

CARTA A TARKOVSKI



São Paulo, 26 de novembro de 2010.

Caro Tarkovski,

A leitura do seu texto “Esculpir o Tempo” trouxe-me uma sensação de conforto e prazer. Descobri nos seus pensamentos uma ressonância com questões e ideias que me acompanham há alguns anos, desde que me envolvi com a arte. O desejo de estabelecer um diálogo com algumas de suas considerações motivou-me a escrever esta carta.
Seu texto é denso, profundo e complexo. Alguns pontos ficaram obscuros para mim; outros revelaram uma afinidade tamanha entre nossos pensamentos, pareceram-me tão pertinentes e incontestáveis, que sequer sinto necessidade de apontá-los nesta carta.
Dedico-me aos que tiveram ressonância em mim, seja por marcarem pontos de vistas divergentes ou por trazerem equilíbrio às minhas questões, dúvidas e inseguranças.
Penso como você, que a arte nasce eterna e insaciável pelo espiritual. Se, como diz Kandinsky, a arte precisa tocar a alma, é porque ele acreditou que houvesse uma alma!
Afinei-me com a sua afirmação de que tanto a ciência como a arte são meios de assimilação do mundo, ferramentas para conhecê-lo na sua condição real. As afinidades não se esgotam nesse ponto. Penso que existem três campos que sustentam o ser: o corpo, a mente e o espírito. Correspondem à ciência, à filosofia e à arte. Eles se relacionam e precisam um do outro, do conhecimento e da intuição, em maior ou menor grau, para acontecerem.
Os filósofos são pensadores. Usam principalmente suas faculdades cognitivas. Ambos, o cientista e o artista, apesar de também cognitivos, são visionários, motivados pela criação. O cientista procura decifrar o passado, o presente e abre caminho para o amanhã. O artista interpreta, levanta questões, propõe novas abordagens para discussões sobre os conflitos do momento, sobre os possíveis rumos da humanidade.
Quando Galileu intuiu que a Terra era redonda, talvez ele não contasse com elementos concretos para acreditar nisso. Contrariando todas as crenças, ele pode ter enxergado uma utopia. Perseguiu pistas e usou suas capacidades lógicas para checar se sua intuição era real ou imaginária. O cientista também conquista a realidade a partir de uma experiência subjetiva.
Einstein teria comentado que a teoria da relatividade surgiu de uma visão, de uma imagem, e não a partir de um embasamento puramente linear e teórico. A ideia tomou conta dele inadvertidamente, e só depois, usando sua capacidade racional e concentração, ele desenvolveu um raciocínio científico para provar a sua teoria. Se não fosse um visionário criador, aceitaria o pré-estabelecido e apenas procuraria ir mais além. Os resultados seriam um equívoco e, portanto, favoreceriam a estagnação.
A ciência, através da criação, promove a evolução dos conhecimentos do mundo. Ela se propõe a desvendar os mecanismos que regem o funcionamento do universo e procura inventar maneiras de adaptar a existência física do homem às condições que o rodeiam. A arte é indefinível. O termo carrega um significado subjetivo e variável, conforme a época. Ela representa, para mim, um mecanismo de busca genuína de si mesmo, numa condição simultânea de subjetividade e de alteridade, que contribui para o processo de evolução da consciência. A dissociação de arte e ciência provoca a manifestação de conflitos.
Outra diferença é que o artista questiona e investiga, mas não busca provar coisa alguma. Se ao criar se propusesse a isso, ele se encerraria, abafaria seu horizonte e deixaria de ser artista, tornando-se um cientista. Só o passado e o presente são fechados, concretos e imutáveis. O futuro é possibilidade. Mesmo para a ciência não existe realidade permanente. Tudo é transitório. Os sistemas se alteram, ocorrem mutações. E a verdade de ontem e hoje será diferente amanhã. O artista, na sua criação, inventa o novo, coloca as suas dúvidas e partilha suas confusões, estabelece um diálogo com o mundo, esperando se aproximar das respostas. Quando isto acontece, novas perguntas se apresentam. O mistério necessário e contido numa obra de arte não é proposital, mas é a essência da própria obra. A resposta está por vir.
O cientista administra tanto o pensamento lógico quanto sua intuição. Mas seu trabalho só adquire consistência quando alcança uma coerência que depende da cognição. O que ocorre com o artista é diferente: o que legitima sua criação é essencialmente sua poética.
A capacidade de criação se apresenta quando nos permitimos experimentar um estado intuitivo. Se o pensamento lógico não abre espaço para a liberdade de inspiração, a naturalidade se esvai e a obra fica rasa, frígida, prisioneira. O pensamento não antecede a verdadeira obra (Kandinsky já dizia isto). Não quero dizer que o conhecimento e a reflexão não sejam fundamentais como bagagem do artista para conferir o conteúdo necessário à obra.
Você afirma que o papel indiscutivelmente funcional da arte está na ideia do conhecimento. Penso da mesma maneira, mas vejo o conhecimento mais como consequência da criação do que como causa. Do contrário, a obra seria uma representação.
Acredito que a filosofia, opostamente, manifesta-se primeiro a partir do pensamento. Tudo isso é muito complexo, porque tanto a filosofia quanto a ciência e a arte fazem parte de um sistema interativo. O grau de racionalização e de intuição varia conforme as condições do momento, mas os três procedimentos em diálogo proporcionam a vinda do novo.
Também acredito que existe um desequilíbrio entre a ciência e a arte, entre a espiritualidade e a razão. A tecnologia se desenvolveu muito, mas a nossa humanidade ficou atrofiada. Detemos hoje um poder científico sem ter discernimento de como devemos usá-lo. Temos conhecimento, porém não temos critério.
Penso igualmente que todo artista é regido por suas próprias leis. O berço vital da arte é a liberdade. Você diz: “A única condição para lutar pelo direito de criar é a fé na própria vocação, a presteza em servir e a recusa às condições”.
Imagino que, quando a vida se aproxima do fim, sentimo-nos tranquilos se tivermos cumprido alguma coisa, se, ao olharmos para trás, pudermos ver o quanto realizamos, o quanto deixamos para que outros realizem, contribuindo para a construção de uma obra comum.
Você é um mestre.

Abraço especial,

Monique Allain

PS1 – Apreendi de seu texto que o cientista, o artista e o filósofo são escultores do tempo. O equilíbrio entre os três, ao trabalharem em cooperação, proporciona bem-estar e harmonia. A vida é uma criação coletiva.
PS2 – A vida também é uma criação multimídia.


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