quarta-feira, 25 de julho de 2012

O MUNDO CODIFICADO (2009)

O MUNDO CODIFICADO

Vilém Flusser

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

 

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

O livro é um ensaio no qual o autor discute o caos em que nos encontramos hoje e levanta a possibilidade de um equilíbrio futuro entre o homem e o seu meio, a partir do surgimento de um novo senso de realidade.

 

Flusser inicia seu texto procurando recuperar o conceito original de “matéria” como um preenchimento transitório de formas atemporais, para discutir a relação dialética entre a matéria[1] e a forma[2]. Quando uma forma ou significado se apresentam em estado energético[3] e não em estado sólido ou líquido, é freqüente qualificá-los inadequadamente de imateriais. Ele critica o uso do termo “cultura imaterial” ao nos referirmos à cultura contemporânea de informações, preferindo chamá-la de “cultura energética”. O autor também resgata o significado do conceito de “informar” como dar formas à matéria. Para ele, as formas não são descobertas mas significados, invenções de modelos.

 

O processo de dar forma envolve quatro passos: a apropriação, a conversão, a aplicação e a utilização. A história da humanidade é uma “história da fabricação” e pode ser classificada em quatro períodos: período das mãos, período das ferramentas, período das máquinas que se inicia na Revolução Industrial há aproximadamente 200 anos, e período dos aparelhos eletrônicos.

 

O objeto fabricado provém da subjetividade de seu criador e para que este consiga concebê-lo, precisa recolher-se em si mesmo, distanciar-se do mundo das coisas, e entrar no mundo da abstração de modo a acessar sua imaginação.  Em seguida, ele deve descrever este objeto, encontrar uma maneira de comunicar a sua idéia. Será necessário codificar a informação em símbolos[4], depois difundi-la e também armazená-la em alguma memória. A comunicação humana é um processo artificial. Ela se propõe a armazenar informações adquiridas e por isto comporta-se inversamente à entropia. Na natureza, há outros processos que também são neguentrópicos. Um exemplo é a complexidade alcançada dos seres vivos. As relações são influenciadas pela cultura. Depois que aprendemos um código, este é incorporado como uma segunda natureza e tendemos a esquecer sua artificialidade e a “primeira natureza” do mundo.

 

Dispomos de dois tipos de mídias para transmitir os códigos ou mensagens: a linear na qual o pensamento é expresso em texto[5], e a de superfície na qual o pensamento se faz através da imagem. Tanto a escrita como as imagens são mediações entre o mundo e o ser humano; são informação. Elas se tornam reais a medida em que determinam nossas vidas, mas nos afastam progressivamente da experiência imediata. A civilização em seus primórdios se apoiava na imagem para comunicar-se. Esta pode ser abarcada em seu todo instantaneamente, permitindo  ao ser decifrada, associações espaciais e multiplicação de significados. A imagem aponta do signo ao significado. Ela pertence ao mundo animado. No entanto, este também é um mundo de mito. Apesar de ter o propósito de dar significado, ela propicia a idolatria e prende o homem na alucinação. Nosso mundo externo é um mundo inanimado. Ele precisa de um motor que é nossa vontade. Para que alguma coisa se mova tem que haver uma causa. Do contrário o atrito, força entrópica constantemente atuante, anula o movimento e conduz à inércia. Existe aí um vazio entre a teoria e a observação. Com o desenvolvimento da abstração, cada vez mais o homem passou a fazer uso da escrita para comunicar suas idéias. A linha escrita relaciona o símbolo ao seu significado, representa e descreve alfabeticamente o mundo tridimensional em uma série de sucessões na forma de um processo. Ela foi fundamental para promover uma consciência histórica e para proteger o indivíduo da imaginação alucinatória. No entanto, impõe uma estrutura ao tratar-se de um código linear e portanto exigir uma temporalidade para sua apreensão. Além disso, provém de uma abstração que aliena o sujeito.

 

No ocidente, a partir do século XIX os homens se tornaram substituíveis e passaram a ser subjugados pelas máquinas, simulações dos órgãos do corpo humano que no entanto não têm capacidade de conferir significado às coisas. Os homens foram ficando cada vez mais artificiais e a sua relação de elemento constante face à ferramenta como elemento variável se inverteu modificando completamente a existência aprisionada pela cultura. A imagem[6] tornou se rara em meio à abstração crescente até a chegada dos aparelhos eletrônicos. Com os avanços tecnológicos este quadro se inverteu, principalmente no que diz respeito à cultura de massas para quem a imagem recuperou sua importância na mídia.

 

O cinema introduziu o movimento no movimento. Apesar de ser uma mídia de superfície no que diz respeito à projeção de imagem, ele confere espacialidade à informação através do som. Assim como um texto escrito, o filme exige um intervalo de tempo para sua apreensão. Talvez por isto não saibamos ainda explorar esta linguagem na plenitude de seus recursos.

 

Estamos ainda muito condicionados ao caráter linear de uma narrativa. É preciso que o “pensamento-em-superfície” incorpore o “pensamento-em-linha”. Só então estaremos caminhando para uma nova estrutura mental. Talvez no futuro, o filme seja uma mídia muito mais livre, parcialmente manipulável e reversível, sujeita ao desejo do leitor que poderá atuar sobre a narrativa e escolher o seu papel.

 

O modo como o mundo está estruturado depende de como nós o codificamos. Para o autor, podemos então dividi-lo em dois: O “mundo dos fatos” contem o “reino da experiência imediata”. O “mundo da ficção” abarca o “reino das imagens” e o “reino dos conceitos”. O tipo de ficção determina uma estrutura de códigos diferentes. Os códigos conceituais relacionam-se com os fatos de forma objetiva e consciente. São mais claros e nítidos, porém exigem um erudição. Fazem parte de uma cultura de elite. Já os imagéticos são subjetivos e inconscientes, mais ricos em mensagem e podem ser apreendidos de uma maneira intuitiva. Todavia requerem para elaboração das mensagens um aprendizado de suas técnicas. O ser humano, ao procurar descrever o mundo, precisou quantificá-lo e para isto fragmentou-o e desenvolveu um código numérico que permitisse anexar um numero às coisas nele inseridas. Desde que os números foram traduzidos em tons e cores, o cálculo encontrou uma forma de projetar a partir de si mesmo mundos perceptíveis aos sentidos. Esta mídia foi incorporada essencialmente pela cultura de massas.

 

Na verdade, o ser humano tem três mundos: o da natureza, o da cultura e o do lixo. O design na base de qualquer cultura visa enganar esta natureza através da técnica. Aquele que o produz consegue “ver” de uma forma abrangente[7] as forças atuantes, e antecipa nichos de possíveis demandas que as transformações apontam. Esta percepção lhe permite inventar novos objetos funcionais. Infelizmente, não tem havido uma preocupação moral por parte dos designers com estes produtos e muito menos com o lixo em que se transformam quando perdem sua função. A complexidade cada vez maior dos objetos começou a exigir a participação de toda uma equipe para sua fabricação. Como o resultado não pode ser atribuído a um único autor, o sentimento de responsabilidade se perdeu de vez. Pode-se considerar que a Segunda Guerra Mundial é um exemplo grave decorrente deste fato.

 

Segundo Flusser, tanto a elite quanto as massas ficaram alienadas: a elite com sua abstração distanciou-se da realidade, enquanto que a cultura de massas escondeu o caráter ficcional da imagem. O ideal seria a união das duas mídias proporcionando ao pensamento imagético uma capacidade maior de elaborar conceitos com preservação do sensório na representação dos fatos. A síntese de ambas talvez resultasse em uma nova civilização.

 

As coisas que compunham o mundo estão sendo substituídas por “não-coisas”. As informações também estão mudando. Apenas decodificáveis e portanto “inapreensível”, elas estão assumindo uma importância gradativa, substituindo o objeto no nosso campo de interesse. As coisas estão encolhendo e as “não-coisas” estão se multiplicando, tornando o entorno progressivamente impalpável. Um software vale cada vez mais e um hardware cada vez menos. De produtores estamos nos transformando em funcionários. O novo homem não precisa mais de mãos, mas de dedos para teclar, para decidir e escolher. Ele não quer possuir e sim vivenciar uma experiência.

 

A tecnologia digital trouxe uma nova imagem, sintetizada eletronicamente, resultante de um código adimensional ou “quântico” que difere da anterior, representativa do mundo. Ela agora é alimentada pelo texto e portanto é um produto da história. Segundo o autor, o objetivo do ser humano no passado era “formalizar o mundo existente”; hoje ele almeja “realizar as formas projetadas para criar mundos alternativos”.

 

Flusser aponta duas tradições básicas. A ocidental e a oriental. A primeira se desenvolve a partir de um pensamento linear, de uma lógica codificada e promove a ciência com o intuito de controlar a natureza. Já a oriental entende o homem como um ser que emerge do mundo para experimentá-lo. Ela tem uma abordagem estética e está calcada em uma vivência onde o homem e o mundo se fundem.

 

É preciso reconhecer que a ciência ocidental se desenvolveu graças a um distanciamento proporcionado pela teoria[8]. Uma síntese que reúne a abordagem ocidental com a oriental parece estar surgindo e proporcionando a substituição dos códigos alfa numéricos por novos códigos híbridos, como por exemplo os códigos digitais de computadores. Com isto, a relação de simbiose entre o homem e a ferramenta pode ser revertida. É possível que no futuro as fabricas se tornem locais de aprendizagem já que dependerão cada vez mais do ser humano para extrair algo de suas ferramentas tecnológicas, que por sua vez exigirão uma aprendizagem teórica crescente por parte de quem as comanda. Há esperanças de que um novo sentimento existencial possa surgir em resposta a este fenômeno, de que ele se manifeste com a tomada de consciência da efemeridade de toda criação e de nossas responsabilidades em relação à sobrevivência do planeta. Talvez seja possível  restabelecer um equilíbrio entre o amadurecimento intelectual humano e a natureza.

 

Como alternativa pessimista para o futuro, pode-se supor que a incorporação do pensamento conceitual pelo imagético seja malsucedida. Isto provocaria uma deterioração da espécie humana em decorrência de uma despolitização crescente de uma sociedade de consumo, do totalitarismo de uma mídia de massa, e de uma conseqüente alienação generalizada.

 

Mas existe também a possibilidade de o pensamento imagético incorporar positivamente o pensamento conceitual e promover assim um tipo de comunicação mais elaborado, com a qual o homem assuma conscientemente uma posição formalista que instaure um novo senso de realidade.

 

O ato de contar visa alcançar uma síntese. O escrever não. Vivemos uma revolução cultural: de sujeitos de um só mundo, estamos nos transformando em projetos de vários mundos. Nos falta talvez aprender a contar...

 

A presença constante de Flusser se faz sentir ao longo de toda a obra. O texto aberto, bem estruturado e fluido nos convida a refletir sobre desafios importantes que a humanidade vem enfrentando. Com muita vivacidade e muita verve, ele transmite suas dúvidas e questionamentos, aponta suposições e previsões apocalípticas, como se quisesse sacudir o leitor antes de oferecer a ele algum alivio. Só então sugere alguma possibilidades de saída. Em tom levemente debochado e sarcástico, Flusser coloca com desenvoltura e clareza seu modo de pensar, de ver, suas interpretações, questionamentos e dúvidas, tecendo raciocínios labirínticos e estendendo pequenas armadilhas e provocações. Fatalista e esperançoso ao mesmo tempo, o autor deixa talvez transparecer uma certa impaciência e desilusão. Afinal, estas dificuldades do mundo contemporâneo foram criadas por nós mesmos.

 

Ao introduzir uma questão, o autor desenvolve um pensamento livre de censuras impostas por limites da lógica. Depois de permitir que o fluxo de idéias se manifeste, ele reorganiza e define os contornos de modo articulado e coerente. Sentimo-nos dentro do processo de nascimento e configuração da obra vivenciando esta experiência de criação intelectual junto com o escritor. Temos a impressão de que Flusser escreve não só para compartilhar suas idéias, mas que para ele, o ato de redigir é uma forma de atrair e configurar o pensamento.

 

O autor vê a civilização contemporânea como um provável resultado de um processo em espiral que vai da imagem para o conceito e depois volta para a imagem. Reunindo densidade e leveza, ele desenvolve sua obra com percurso análogo. As palavras constantemente nos evocam imagens de seus pensamentos. Se ele não se atém a fundamentar suas idéias referindo outros autores, nas entrelinhas ele revela uma grande erudição e um  conhecimento profundo da filosofia.

 

Monique Allain, 2009.



[1] De caráter concreto e transitório
[2] Que envolve o intelecto e cujo significado é eterno
[3] Ou abstrato
[4] Que representam o significado das coisas
[5] Ou seja, em linhas
[6] Superfície
[7] Flusser define este olhar como o “segundo olho da alma”
[8] Ou pela razão

 


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